Jornal Estado de Minas

EM DIA COM A PSICANÁLISE

Somos todos bissexuais. Gênero não se reduz ao corpo, ao sexo, ao biológico

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Me foi recomendado o livro de Paul B. Preciado, intitulado “Eu sou o monstro que vos fala: Relatório para uma academia de psicanalistas” (Zahar, 2022). Trata-se do discurso de um homem trans, um corpo não binário, na Escola da Causa Freudiana, em Paris, para 3,5 mil psicanalistas, em novembro de 2019. Tema: “Mulheres na psicanálise”.





Segundo seu entendimento, a psicanálise vê como monstruosa a posição do trans. No caso, Preciado fala por si, que de Beatriz se tornou Paul. Afirma que causou um terremoto e nenhum psicanalista presente ousou aceitar seu desafio (no mínimo inapropriado) por se declarar homossexual, ou de gênero não binário. Ao contrário, metade deles riu, vaiou e pediu-lhe para se retirar, enquanto a outra metade aplaudiu.

O tempo de exposição terminou, Preciado precisou se apressar, pular parágrafos e apenas disse a quarta parte do que trazia (o tempo da exposição é pré-acordado). Neste livro, publica na íntegra seu discurso. Se escreve bem, lê mal. Se tivesse atentado para Freud em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade infantil”, teria percebido o equívoco.

Disse Freud, em 1908: somos todos bissexuais. As crianças são “perversos polimorfos”. Traduzo: gozam com qualquer prazer. Mais: o gênero não se reduz ao corpo, ao sexo, ao biológico, mas à subjetividade construída a partir das relações familiares e sociais e também das identificações.





Assim é desde que o mundo é mundo – lembrem-se dos gregos na Antiguidade –, lidamos com a inversão entre corpo e desejo. Até hoje, insiste-se em negá-lo e não se compreende ou se aceita a realidade dos fatos.

De fato, há preconceito. Inclusive entre os que se dizem psicanalistas. Talvez porque tal hipótese incluía todos nós em nossa relação com o nosso desejo. Como disse mais tarde Lacan, o que orienta a sexualidade é a economia dos gozos. Ninguém pode negar seu desejo, porque se trata de uma escolha forçada, inconsciente, que se impõe ao sujeito. Nem sempre desejamos o que queremos!.

Essa disjunção aparece nos discursos de trans analisados. Assisti à entrevista de Laerte a Marcelo Tas, na TV Cultura. Belíssima. Declara que passou 30 anos escondendo que gostava de homem, até não poder mais. Depois, outros passos o levaram à transformação de gênero. Laerte se declara mulher, embora não negue ser pai de seu filho e sofrer o luto pelo homem que nele ficou perdido.



E justifica, com clareza: a criança que perde seu animal de estimação, mesmo que lhe deem outro, sabe que não é aquele. É outro. Pode ser até melhor, entretanto, houve a perda e há o luto como consequência. Ela convive com a dor. Com a saudade, que é símbolo de uma falta, de uma ausência presentificada.

Portanto, o luto pelo que foi perdido não se pode negar e tampar com negações. Apenas convive-se com a dor. E não a têm os heteros?

Sim, existem equivocados que se dizem psicanalistas e pretendem consertar ortopedicamente a homossexualidade. Ignoram, talvez, a bela carta de Freud à mãe de um homossexual com esclarecimentos sobre a mais absoluta normalidade de seu filho? Não se pode curar o que não é doença.

Ignoram o caso clínico da Jovem Homossexual, filha de um industrial de Viena que a conduz a Freud a fim de curar seu desejo? E o que lhe responde Freud? Não se pode curar o desejo. Cada um deseja o que deseja, independentemente se lhe dói ou não. Traduzindo para o popular: ninguém manda no coração!. Isso não é doença e não existe tratamento.





Paul B. Preciado é um estudioso, porém erra feio em uma premissa básica na ética psicanalítica. A psicanálise que sustenta sua ética não pode, por motivos óbvios, ser acusada de colonialista, tradicionalista, preconceituosa, binária e ultrapassada, porque concordamos com os teóricos que afirmam que o corpo não decide nada sobre o desejo. O que nos interessa é o sujeito que dentro daquele corpo tem de se haver com seu gozo, seja ele qual for.

Diante da agressiva e injusta acusação, muitos psicanalistas levantaram a voz. É excelente o artigo “Entre o inconsciente e a cultura: o sujeito”, de Antônio Quinet, publicado na coletânea “Gênero”, organizada por Daniela Tapermam, Thais Garrafa e Vera Iaconelli para a coleção “Parentalidade e Psicanálise” (Autêntica, 2020). Igualmente excelente o texto de Denise Maurano na “Psicanálise & Barroco em Revista”

Boa leitura!