Vivemos em uma sociedade adoecida. A pandemia trouxe o agravamento das questões existenciais durante e depois do isolamento. Ao mesmo tempo que nos permitiu ficar, de certa maneira, longe do olhar do outro que nos invoca a estar sempre de acordo com os princípios da realidade.
De maneira que, isolados, fica mais fácil se perder nos longos corredores do imaginário, construir castelos de vento, como que para nos consolar da solidão, do vazio, quando fustigados por um vírus que tem supremacia, temporária que seja, sobre tudo mais. A política acrescentou ainda maior reatividade e odiosidade incomum.
De modo que hoje devemos lidar com as consequências e sintomas que derivam deste momento traumático vivido globalmente e que nos apresentam fenômenos indesejáveis e radicais. E de uma disputa acirrada entre extrema direita e esquerda. Devemos falar muito e nos horrorizar mais ainda diante dos sintomas de natureza criminosa que se sucederam, como o assassinato de crianças e as ameaças de ataques a escolas, que se multiplicam. É preciso pensar.
Pessoas doentes e perversas, que ultrapassam os limites da razão e o sentimento de civilidade, respondendo ao momento difícil com a violência contra indefesos, além de prometer episódios funestos e espetaculares com atos aparentemente grandiosos e heroicos de cunho negativo. É preciso ver e escutar que um se segue ao outro como imitações .
Felizmente, a mídia tem se posicionado de modo inteligente, deixando de noticiar ou publicar fotos destas matérias. Daqueles que se deram o direito de escapar dos limites da lei, da repressão na qual nos civilizamos, dando nossa cota de sacrifício de nossos instintos naturais para adentrar na vida comunitária. Escapar a esta repressão significa agir conforme instintos antissociais, que deveriam ter sucumbido à repressão, porém permanecem ativos no inconsciente e podem ser despertados em situações específicas.
Refiro-me a tudo que abandonamos quando somos educados. Por exemplo, quando crianças, fazemos o que queremos, gritamos, mordemos, embirramos, e fazemos qualquer coisa sem medir as consequências ou sentirmos qualquer culpa posterior, mesmo quando castigados. Com o tempo aprendemos a nos submeter, via educação e linguagem, à moralidade e aos ideais de nossa cultura.
Disse Freud que as crianças são perversas polimorfas. Esta polimorfia mostra que não temos, a priori da educação, qualquer noção de certo errado, bem ou mal. Há quem discorde – para dar um exemplo, o filósofo Kant, que acreditava em um bem moral inato. Mas para Freud é através da humanização, a partir da transmissão da linguagem e da educação e convivência familiar, que adquirimos a noção da moralidade e dos princípios da realidade.
Freud afirma ainda que pode haver uma paralisia que vem da relação entre alguém poderoso e um impotente e desamparado (como uma hipnose), no qual este assume o ideal do eu do outro como seu, produzindo uma identificação que justifica a influência e a imitação dos atos perversos que podem se multiplicar. No caso da exposição pública, é notável este fato. Já na identificação em massa, ela se dá também entre os membros que adotam os mesmos ideais e se ligam por isso horizontalmente.
Há como consequência desta ligação a diminuição da racionalidade, da autonomia, a iniciativa individual, desinibição da afetividade, similitude de reações, incapacidade de moderação e tendências a ultrapassar todas as barreiras na expressão dos sentimentos e a descarregá-los inteiramente na ação. E aí salve-se quem puder nesta loucura fanática que estamos vivendo. O cuidado da mídia é bem-vindo na prevenção da propagação da perversão. O problema é que temos por aqui a perversão e corrupção endêmicas...