Jornal Estado de Minas

EM DIA COM A PSICANÁLISE

Ninguém manda no coração. Nossa ética é a de ser fiel ao inconsciente

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A psicanálise não fabricou uma visão de mundo para chamar de sua, como a ciência, a filosofia e a religião. Em busca de uma verdade definitiva sobre o homem e a vida, estes sistemas complexos são bem pensados e capazes de fornecer guias de existência para aqueles que desejam certezas. 





Não podemos negar, entretanto, que embora estejamos numa extraterritorialidade em relação a qualquer ideologia, sistema ou disciplina, ainda assim nossa ética não tem classificação igual entre outras que vigoram no mundo.

Freud afirma que encontramos consolo para nosso orgulho narcísico, afirmando que estes guias de existência sempre ficam ultrapassados e envelhecem, e que nosso trabalho miúdo, estreito e míope torna necessárias várias edições e reedições. As exigências da certeza não  podemos dá-las simplesmente porque nossa ética é imaterial. Ou melhor, nossa matéria é a letra. Matéria sonora. A palavra, os fonemas assonantes.

Deles retiramos a verdade de cada um e ela será única, não podemos parear ou agrupar o sujeito nem o classificar. Porque trata-se de uma verdade e de um saber único sobre a forma como cada um lida com a subjetividade. Com o seu gozo inclassificável. Por gozo não se entenda apenas o sexual, mas qualquer excesso de energia pulsional acumulada é capaz de produzir o mal-estar, o sofrimento, o masoquismo, o sadismo, a inibição, a angústia (o afeto que afeta), os sintomas, enfim, a dor de existir.





Por isso, não podemos nos permitir enquadrar nenhum sujeito em um sistema  em que poderemos garantir “normalização ou normatização”, porque não nos é possível enquadrar as fantasias, nem um fantasma fundamental, que é estruturado conosco desde cedo, nos fazendo o que somos ou pensamos ser. Ao contrário, devemos desenquadrar deste o sujeito, para que pare de repetir o mesmo em cada relação, em cada aposta fracassada.

Assim sendo, nossa ética é a de ser fiel ao inconsciente, e ele existe em nós como um saber que não sabemos, porque está fora da consciência, sendo um esquecido que não se esquece de nós. 

Ele sabe mais do que nossa consciência sobre nossas verdades secretas, que nem mesmo nós suspeitamos existir. É um estrangeiro em nossas terras, que leva a caminhos e trilhas por onde andamos  sem saber onde chegaremos ou nos faz andar em círculos, como aqueles que se perdem em uma floresta, sem direção.





Na elaboração psíquica dos sonhos, na escuta das associações livres e atentos, poderemos nos aproximar desta discreta presença, que nem tão discreta é quando nos põe a produzir inibições e sintomas que nos ajudem a evitar, manter sob controle, pelo contra investimento, poderosas forças pulsionais antissociais, que nos arrancam do politicamente correto, do desejável socialmente.

E desses poderosos impulsos que sacrificamos pela vida comum somos vítimas para sempre, pois eles nunca se cansam de pressionar para escapar da masmorra na qual foram jogados, e de lá continuam em força de ebulição escapando da censura imposta pelo eu, e que os mantém na inconsciência. Escapam em atos falhos, piadas que arrancam surpresa e risos, sonhos sem sentido que mascaram o conteúdo aprisionado da verdade mais oculta do nosso existir.

Quando escapam e nós os pegamos pelas orelhas, podemos fazer muitas coisas com a verdade. Podemos, inclusive, forçá-los  a voltar para onde vieram, caso temamos a consequência do desejo evitado. Temido desconhecido que insiste em se apresentar com a mesma pressão com a qual o obrigamos a lá permanecer.

Podemos escutar a verdade sobre nosso desejo e dar luz àquilo que provavelmente trará sentido a muito do que vivemos e sofremos justamente por não ter acesso ao nosso mais estranho íntimo. E que talvez não seja assim tão mau quanto julgávamos. Talvez sejam desejos fortes que não poderemos mais evitar. Mas, afinal, sempre soubemos de tudo isso! Pois sempre ouvimos dizerem e o sabemos por nós mesmos: ninguém manda no coração...