O caso da estudante de 9º período de medicina em Alagoas, que ironizou a morte de uma paciente na última terça feira, repercutiu negativamente em todo o país. A jovem expôs o caso da paciente em uma rede social, compartilhando os dados pessoais e a condição de saúde da enferma, com amigos. Queixou-se da interrupção do horário de descanso dela, e ao final ironizou o óbito da paciente, informação que foi ilustrada por uma alegre “selfie”, informando: “a mulher morreu, e eu não dormi”. Após a divulgação do fato, a estudante foi desligada do hospital municipal, e a faculdade está discutindo possíveis sanções.
A grande repercussão causada pelo fato se deu pelo fato de a estudante ter, em poucos minutos, praticado a maioria das infrações éticas, legais e morais mais reprováveis dos profissionais da saúde, mostrando total despreparo para um dia praticar a profissão que almeja.
Antes de médico, é preciso ser humano, mostrando um mínimo de respeito e empatia com o sofrimento alheio. Esta é a essência maior da medicina, conforme suas origens na teoria hipocrática. E fazer graça com o sofrimento e a morte da paciente aos seus cuidados, pelo fato de lhe privar de algumas horas de sono, é algo que a aproxima mais da psicopatia do que do perfil necessário para a prática da medicina.
Para analisarmos a conduta da estudante, não nos excederemos em confrontá-la ante o Código de Ética Médica, regras que se mostram muito além de sua capacidade intelectual. O Código de Ética do Estudante de Medicina já se preza a condenar completamente a conduta da estudante. E não precisamos explorar os 45 artigos do referido código, mas somente um de seus 18 princípios iniciais:
V - O estudante de medicina guardara%u0301 absoluto respeito pelo ser humano e atuara%u0301 sempre em benefi%u0301cio deste com prude%u0302ncia, apresentando-se condignamente, cultivando ha%u0301bitos e maneiras que fac%u0327am ver ao paciente o interesse e o respeito de que ele e%u0301 merecedor (...).
Da análise do código, podemos ainda identificar inúmeras infrações presentes no caso, como o art. 23 (empatia e respeito ao paciente), art. 25 (divulgação sensacionalista), art. 28 (privacidade), art. 29 (sigilo), art. 32 (sigilo do prontuário), art. 34 (confidencialidade), art. 39 (solidariedade e respeito), dentre outros.
Para não nos estendermos pelo óbvio, podemos resumir o restante do código de ética em poucos termos, que já ilustram a distância da conduta adotada das obrigações assumidas pelo estudante: ética, moral, valores, educação, respeito, sigilo, intimidade, empatia, humanidade, beneficência, prudência, sigilo e dignidade.
Ainda mais do que todos nós, como sociedade, os médicos e estudantes de medicina precisam refletir sobre o tema. Pois se o caso da estudante expôs um pouco do que pode existir de pior nos corredores dos hospitais e universidades, revelou também fatos e atitudes que infelizmente são muito comuns no meio, por parte de profissionais e estudantes igualmente despreparados (que embora sejam minoria, existem em proporção cada vez maior, o que é muito preocupante).
Pois no próprio grupo de amigos onde foi compartilhada a vergonhosa atitude da estudante, se houve membros que se revoltaram e a denunciaram, possivelmente houve outros que apreciaram a piada de mal gosto, e a compartilharam. O que estimula a continuidade de práticas absurdas como esta, e disseminam o que há de pior nas pessoas e na prática da medicina, a mais bela das profissões, sendo praticada cada vez mais por profissionais sem a menor vocação.
Criticar com firmeza casos como o presente é agir em defesa de toda a classe médica. Pois, infelizmente, a sociedade tem o péssimo hábito de medir toda uma classe profissional conforme os piores exemplos. Relevar atitudes como a da estudante em questão acabam por macular toda a classe, inclusive a grande maioria que mantém uma conduta que em nada se assemelha com a da estudante.
A profissão do médico demanda mais habilidades e recursos do que a maioria das demais. É uma profissão que encanta e atrai muitos jovens pelo status social, além das expansivas possibilidades financeiras. Mas ser médico é muito mais do que isso, e demanda mais renúncias do que qualquer outra profissão. Caso não esteja preparado para tamanhas renúncias, que se escolha outra profissão, pois médicos sem vocação para o ofício não são um benefício para a sociedade, mas sim, uma grande mácula.
Quanto aos estudantes que, desde a universidade, mostram um perfil mais voltado para a comédia mórbida, deveriam optar por outra profissão que não a médica, como por exemplo a stand-up comedy. Mas nunca sem antes procurar um médico para se tratar, pois a pessoa que ironiza a morte do paciente sob seus cuidados claramente não tem equilíbrio e espírito sequer para fazer piadas.
Renato Assis é advogado, especialista em Direito Médico e Odontológico há 15 anos, e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO do escritório que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país.
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