O presidente Jair Bolsonaro sancionou no dia 22/03/2022 a lei 14.313/2022, que permite ao SUS receitar e aplicar medicamentos com indicação de uso diferente da bula aprovada pela Anvisa. E como era de se esperar, a medida gerou uma avalanche de reações no setor da saúde, e na política. Mas o que de fato mudou com a lei? Vamos aos fatos.
Cada medicamento registrado no Brasil recebe a aprovação da ANVISA, para uma ou mais indicações. E estas vão para a bula dos medicamentos. Para serem registrados, os medicamentos precisam ter comprovada sua qualidade, eficácia e segurança, que são medidas através de testes.
Até então, a Lei Orgânica da Saúde proibia ao SUS o pagamento, ressarcimento e reembolso de medicamentos sem registro na ANVISA. A nova lei acrescenta duas exceções, que anulam a barreira imposta pela ANVISA. Mas por que isso ocorreu?
O problema é que a ANVISA não vinha cumprindo com sua função, travando o processo de incorporação. Existem centenas de medicamentos que possuem aplicação terapêutica comprovada para utilização fora da bula, o que é feito pelos médicos em todo o país na saúde privada, sem maiores problemas (mas por sua conta e risco). Esta utilização é chamada de “off-label” e é muito comum em todo o mundo.
Mas no SUS, a realidade era outra. E os médicos precisavam lidar diariamente com este obstáculo ao cuidado e saúde dos pacientes da rede pública. O Ministério da Saúde já vinha solicitando a ampliação do uso de diversas medicações junto à ANVISA, mas prevaleciam as divergências burocráticas e jurídicas (além de diversos interesses envolvidos).
Após a publicação da nova lei no Diário Oficial da União, a Anvisa se manifestou imediatamente de forma contrária, afirmando que “o uso off-label de medicamentos pode aumentar os eventos adversos”. Mas seu argumento não poderia ser mais frágil.
Segundo a lei, para aprovação no SUS é necessária a recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de tecnologias no SUS, a CONITEC. E para a recomendação, o medicamento deve ter sua eficácia, eficiência e segurança comprovados. Exatamente como na Anvisa.
A lógica sustentada pela Anvisa seria cômica, se não fosse trágica: Com acesso a mais medicamentos e tratamentos, teremos mais riscos de eventos adversos. Sim, mas teremos menos doentes morrendo sem acesso aos tratamentos! Ora, todo tratamento implica em risco, mas em regra, este é menor do que o risco de nenhum tratamento! Em caso de dúvidas, pergunte aos doentes e seus familiares, que morrem sem ter sequer a chance de se tratar, por conta de questões burocráticas e jurídicas.
Esta é exatamente a realidade vivida pelas pessoas com doenças raras. Enquanto os órgãos reguladores dos EUA e Europa liberam um produto novo com a agilidade demandada pelos doentes, a bur(r)ocracia da Anvisa atrasa o processo ou o inviabiliza, causando sofrimento e morte a milhares de brasileiros.
Tal realidade também é vivida pelos quase 75% dos brasileiros que dependem do SUS, contudo ainda mais absurda: A dificuldade é com medicamentos comuns, de baixo custo e já existentes no Brasil, com ampla utilização off-label na saúde privada. Cenário que pode mudar com a nova lei, que facilita as alternativas aos doentes, e lhes dá uma chance de tratamentos inovadores.
Mais um ponto favorável da lei, é observar que a mesma desagradou à indústria farmacêutica, que em nota, criticou a novidade afirmando que trará riscos à saúde pública, como se esta fosse o foco dos fabricantes de medicamentos (caso fosse, não viveríamos o drama dos medicamentos órfãos). Ademais, são estas mesmas empresas não se interessam em solicitar a alteração das bulas na Anvisa, impedindo a incorporação dos medicamentos ao SUS, por interesses escusos.
Cabe ressaltar que a lei descreve detalhadamente o processo para a incorporação de medicamentos ou procedimentos pelo SUS, indicando por exemplo que na CONITEC, a relatoria do processo deve ser distribuída conforme a especialização e a competência técnica de um dos 13 membros, ante a matéria em questão. Importante salientar que a adoção dos medicamentos depende ainda de avaliação econômica, sendo preciso demonstrar benefícios e custos economicamente equiparáveis às tecnologias já usadas na saúde pública, caso existam.
A articulação política para barrar a nova lei e assegurar o poder da Anvisa já é intensa nos corredores de Brasília. Movimento que inclui além da própria agência reguladora, a indústria farmacêutica e parte da classe política. O que nos diz muito acerca das intenções envolvidas.
A nova lei é um avanço, ou um retrocesso? Depende do ponto de vista, e dos interesses do observador. A única certeza é que a medida é uma mudança em um sistema que absolutamente, não funciona. O que sem dúvidas, é positivo.
Renato Assis é advogado, especialista em Direito Médico e Odontológico há 15 anos, e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO do escritório que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país.
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