Jornal Estado de Minas

DIREITO E SAÚDE

Cartões de desconto: entre o SUS e a saúde suplementar

A crise no sistema de saúde parece não ter fim, e as opções tradicionais aos brasileiros sempre foram deficientes. Se de um lado temos o precário e caótico SUS, no outro extremo temos a trágica situação dos brasileiros que pagam também por um plano de saúde particular, para contar com um atendimento minimamente digno. Contudo, mesmo estes quase 1/4 dos brasileiros que podem pagar pelo "luxo" da saúde suplementar não levam tanta vantagem, tendo em vista o altíssimo custo dos planos e a deficiência do serviço prestado, ante a negligente regulação da ANS. 






Com este paradoxo, é cada vez maior a parcela dos brasileiros que não podem pagar por um plano de saúde, nem querem depender exclusivamente do SUS. E esta crescente demanda trouxe uma terceira opção: Os Cartões de Desconto em Saúde, modalidade que surgiu na década de 1970 (antes mesmo do surgimento da ANS) e nunca parou de crescer.

Sua atividade consiste em um sistema de descontos em serviços assistenciais à saúde de baixa complexidade, que chegam a 80% de economia se comparados à saúde suplementar. A utilização é paga pelos pacientes diretamente aos médicos, laboratórios, clínicas e hospitais. As associações ou healthtechs (startups do setor da saúde) recebem somente uma assinatura mensal, para disponibilizar a rede de atendimento. 

Nos últimos 50 anos, a atividade não parou de crescer. Seu baixo custo atraiu uma grande migração de usuários dos planos de saúde suplementar, e possibilitou o upgrade de milhares brasileiros que sempre dependeram exclusivamente do SUS. Mas um crescimento ainda mais vertiginoso ainda estava por vir, nos últimos 15 anos. 





A partir de 2020, tivemos a crise causada pela COVID-19, e o vergonhoso oportunismo dos planos de saúde, que tiveram lucro recorde de 17 bilhões de reais no ano, e ainda assim impuseram um aumento histórico aos usuários, em 2021. E estes ingredientes alavancaram ainda mais o crescimento dos Cartões de Desconto, a ponto de tornar a modalidade uma grande preocupação para as operadoras de saúde suplementar, e para a ANS. Estima-se que atualmente a modalidade já atenda a mais de 12 milhões vidas.

É importante esclarecer que a atividade não se confunde com a dos planos de saúde suplementar, não estando, portanto, sujeita à Lei dos Planos de Saúde (Lei 9656/98), e isto precisa ficar 100% claro para os usuários. Pois existem entidades atuando de forma inadequada, simulando a atividade de planos de saúde em desrespeito à lei e às normas regulatórias do setor, e colocando em risco tanto os usuários quanto os próprios empreendedores, dadas as pesadas penalidades impostas tanto pela própria ANS, quanto pelo Ministério Público Federal.

Mais um ponto importante de ser abordado é o escopo jurídico adotado. Existem tanto associações quanto empresas atuando na área, sendo que algumas já atendem a milhões de usuários. Embora ambas sejam consideradas legais, as diferenças entre a atividade empresarial e a associativa são grandes, e o emprego do modelo errado pode comprometer a legalidade do negócio, sendo essencial o acompanhamento por um especialista na área. 





No caso das entidades que atuam com a forma jurídica adequada ao seu modelo de negócio e sem ultrapassar as fronteiras da Lei 9656/98, podemos afirmar que atuam fora do alcance regulatório da ANS, e também de problemas com o Ministério Público Federal. Mas isso não significa que possuam um passe-livre absoluto, pois os Cartões de Desconto atuam sujeitos a todas as leis, normas e regras gerais que qualquer outra empresa ou entidade que atua no setor da saúde, ou qualquer outro setor. Para o caso das que atuam sob o escopo de associações, o rol de obrigações e deveres no Terceiro Setor é ainda maior, para fazer jus aos benefícios que o modelo oferece.  

A ANS reconhece a legalidade da atividade, com algumas críticas, afirmando que os Cartões de Desconto "não garantem assistência integral à saúde" (o que é verdade, mas não diminui sua importância). Por outro lado, a agência generaliza equivocadamente quando afirma que as entidades "induzem o consumidor a acreditar que estão comprando um plano de saúde", postura que desmascara a posição da agência em defender arduamente a reserva de mercado da saúde suplementar, com uma silenciosa perseguição aos cartões de desconto, sendo comum a aplicação de multas que chegam a 250 mil reais. 
  
O Conselho Federal Medicina - CFM também já foi um crítico da atividade, mas mostrou-se recentemente favorável através da Resolução nº 2.226/2019, que permitiu descontos em honorários médicos através de cartões de descontos e a divulgação de preços das consultas médicas de forma externa. Sem dúvidas um grande avanço para o setor, garantindo a eticidade dos médicos que atuam através dos cartões.

Os Cartões de Descontos são uma realidade incontestável no setor da saúde. São uma excelente opção para quem deseja ter mais do que o SUS oferece, sem os custos extorsivos dos planos de saúde suplementar. São uma boa saída para os médicos que atuam "escravizados" pelos planos de saúde suplementar. E são uma excelente opção de negócio para os profissionais da saúde que possuem a veia empreendedora. Só não agradam aos planos de saúde suplementar, e à ANS. Por que será?  

Renato Assis é advogado, especialista em Direito Médico e Odontológico há 15 anos, e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO do escritório que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país.  
renato@renatoassis.com.br