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Estado de Minas DIREITO E SAÚDE

A polêmica proibição das terapias hormonais

Em 1947 a OMS definiu saúde como 'um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença'


22/04/2023 14:50 - atualizado 22/04/2023 15:06

comprimidos diversos em foto ilustrativa
(foto: Shutterstock/Reprodução)
No último dia 11, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução CFM nº 2.333/2023, elaborada a pedido de pelo menos 5 entidades de especialidades médicas, para que o tema em questão fosse regulamentado. A medida foi publicada com a seguinte ementa:

  • "Adota as normas éticas para a prescrição de terapias hormonais com esteroides androgênicos e anabolizantes de acordo com as evidências científicas disponíveis sobre os riscos e malefícios à saúde, contraindicando o uso com a finalidade estética, ganho de massa muscular e melhora do desempenho esportivo."

A Resolução gerou reações positivas e negativas na comunidade médica, que retrataremos a seguir.

O que mais chamou a atenção foi o seu conteúdo quase idêntico ao da Resolução 1.999/2012, elaborada há 11 anos para combater as terapias antienvelhecimento, proibindo a reposição hormonal, salvo em caso de deficiência comprovada. Desta vez, o alvo da Resolução foi a terapia hormonal com objetivos sobretudo estéticos. 

Não podemos negar a atual banalização do uso dos hormônios. É preocupante a irresponsabilidade de alguns médicos, que os prescrevem sem solicitação ou análise de exames, e pouco se importando com a saúde dos pacientes a longo prazo, visando somente os resultados estéticos imediatos, para atrair outros pacientes. Contudo, é preciso compreender que estes médicos são a exceção, e não a regra. Proibir o uso dos hormônios de forma praticamente ampla e irrestrita, interfere gravemente na liberdade profissional de todos os médicos, e na autonomia de todos os pacientes. Isso não é uma solução, mas sim, um problema ainda maior.
Além disso, a mais grave utilização dos hormônios não foi afetada pela Resolução de 2012, e nem será pela atual. Trata-se do comércio irregular, que ocorre nos fundos de inúmeras academias sem qualquer acompanhamento médico, em muitos casos com hormônios de origem duvidosa, que são administrados em doses cavalares. Na verdade, a Resolução tende a aquecer ainda mais este obscuro mercado, causando danos à saúde de milhares de pessoas que se tratavam corretamente, com acompanhamento médico.

A Resolução não afeta também os profissionais de outras áreas, como os dentistas, que são autorizados a prescrever os hormônios, inclusive com finalidade estética. A própria Associação Brasileira de Harmonização Orofacial (ABRAHOF) já emitiu nota neste sentido, apoiada em vasta literatura científica. 

Que fique claro: não apoiamos a atuação irresponsável de uma minoria de médicos que prejudicam a saúde de seus pacientes, de forma consciente. Mas defendemos incondicionalmente a liberdade profissional de todos os demais, assim como a autonomia dos pacientes (desde que devidamente informados e conscientes dos riscos assumidos). E neste aspecto, a nova Resolução merece as duras críticas que tem recebido de grande parte da comunidade médica, e de toda a sociedade.

Em seu conteúdo, salta aos olhos o cunho totalmente pejorativo dado aos temas “ganho de massa muscular, desempenho esportivo e finalidade estética”. Dá a impressão de que interferir no organismo, trazendo algum risco em função destes aspectos, seria um crime capital. Contudo, não custa lembrar que ainda em 1947 a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu a saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença”, e esta definição coloca em xeque a lógica sustentada na Resolução.

É cientificamente comprovada a importância da manutenção de um bom volume muscular e de boas condições atléticas, sobretudo em tempos de combate ao sedentarismo e à obesidade (uma grave doença).

Mesmo quando falamos da estética, não podemos ignorar a importância da saúde mental, e os impactos que a estética corporal possui neste aspecto. Portanto, buscar um tratamento com foco somente estético, não é nenhum absurdo. Muito menos a busca da melhoria das condições de saúde, como forma de prevenção de doenças. 

De fato, é uma prerrogativa do CFM definir o que é experimental no âmbito da medicina, garantida pela Lei do Ato Médico. Contudo, tal prerrogativa traz consigo uma obrigação: a sustentação científica da posição adotada. E no presente caso, os estudos citados não foram expostos à sociedade ou à classe médica. O conselho se limitou a informar sua sustentação em “bons estudos”, condenando os “estudos ruins” que baseiam a posição contrária, mas não se prezou a os identificar, e diferenciar. Foi uma proibição tal qual a de um adulto, a uma criança: não pode, e pronto!

Contudo, o uso de medicamentos é totalmente liberado aos médicos, inclusive na modalidade off-label (fora da recomendação da bula), com o aval do próprio CFM e da ANVISA, que assim o descreve:

“O uso off label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico, mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado.”

Por que o uso dos hormônios, substâncias produzidas pelo próprio organismo humano (diferente dos medicamentos) e com benefícios cientificamente comprovados (caso usados adequadamente) é tratado de forma diferente? Este questionamento, feito por muitos médicos, nos parece bastante razoável. 

Por outro lado, causam certa perplexidade algumas das justificativas apresentadas, como a fornecida em entrevista veiculada na última semana, quando a diretora de uma das sociedades médicas envolvidas apontou como benefício da Resolução a diminuição dos crimes violentos no Brasil, através do controle dos níveis de testosterona dos homens. Argumento que chega a ser cômico, de tão absurdo. 

Outra justificativa polêmica, foi a ausência da garantia de que os benefícios dos tratamentos hormonais superam seus riscos. Por este raciocínio, teríamos que proibir também todas as cirurgias plásticas de caráter estético. Anualmente, são realizadas no Brasil cerca de 1,3 milhão de cirurgias plásticas, e pelo menos 700 mil de tratamentos estéticos não cirúrgicos. Sua finalidade é meramente estética, e não há qualquer garantia de segurança aos pacientes. A lipoaspiração é a cirurgia que mais mata no mundo, mas não se cogita sua proibição.

Ora, a atividade médica é norteada pela incerteza, e pela total ausência de garantias. Qual tratamento é 100% garantido? Nenhum! Qual medicamento é 100% seguro aos pacientes? Nenhum! Caso haja dúvida, basta ler a bula de uma simples aspirina, ou ler sobre a iatrogenia. 

Se o problema é a atuação irregular de uma minoria de médicos infratores, seria mais razoável investir na fiscalização, e na punição. Criar uma norma tão ampla, que pode afetar a conduta dos médicos que usam as terapias hormonais cuidadosamente, visando a manutenção ou melhoria da saúde dos pacientes, devidamente respaldados em vasta literatura médica e sem falsas promessas de rejuvenescimento, é no mínimo, questionável. 

  • Renato Assis é advogado, especialista em Direito Médico e Odontológico há 16 anos, e conselheiro jurídico e científico da ANADEM. É fundador e CEO do escritório que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o país.    

  • E-mail: renato@renatoassis.com.br 

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