Jornal Estado de Minas

OPINIÃO SEM MEDO

Bolsonarismo de um lado, negritude pobre de outro e um chorão no meio



Se há algo frequente, que sempre observo nas manifestações bolsonaristas, muito mais do que as camisas da seleção brasileira de futebol e a costumeira violência contra a imprensa, é a total ausência do ‘Brasil real’. Sim, reparem: só há brancos, de meia-idade ou superior, bem-vestidos, óculos escuros e cabeleiras loiras (mal-tingidas) por todos os lados, barrigas e rugas vistosas, e uma profunda mistura de ignorância, breguice e índole fascistóide.



Neste último domingo, dia primeiro de maio, saí para almoçar, sem me dar conta de que era Dia do Trabalho - ou do Trabalhador. Curiosamente, me deparei com dezenas de senhores e senhoras trajando a ‘amarelinha’ e pensei: tem jogo do Brasil hoje? Mas logo me lembrei de que haveria manifestação em defesa do criminoso Daniel Silveira, o futuro ex-deputado bolsonarista, que deseja o fim da democracia, em nome da… democracia!

- Leia:  Na liberdade de expressão bolsonarista, beijo gay não pode, AI-5, tudo bem

Após a comilança, minha esposa quis tomar sorvete, e lá fomos a uma badalada sorveteria do bairro mais nobre - Ops!, perdão, nobreza é outra coisa -, digo, mais caro de BH. Pois bem, havia gente saindo pelo ladrão, e enquanto ela esperava na fila, sentei-me em um banquinho no fundo da loja, de onde era possível assistir àquele interminável e ruidoso ‘vai e vem’, torcendo para aquele inferno terminar o quanto antes.

De repente, eis que surge à minha frente uma funcionária da sorveteria. Negra, meia-idade, com um uniforme completo (inclusive touca de cabelo) e máscara, em meio a toda aquela branquitude rica, barulhenta, verde-amarela e, claro!, sem máscara, que emporcalhava as mesas e o chão que a moça limpava. Na boa, era a representação moderna, ‘ipsis litteris', dos tempos de Casa Grande e Senzala.

Seguinte: tô cagando e andando para rótulos políticos! Esquerda, direita, centro… acho tudo uma besteira sem fim. Minhas questões filosóficas e sentimentais são sempre movidas por minha extrema sensibilidade - talvez compaixão - às questões humanitárias. Não dá para não sofrer, mesmo que resignado perante nossa conhecida desigualdade social e ciente de que o mundo é mesmo cruel, diante de uma cena daquelas.



De um lado, um monte de brancos ricos, preocupados com Daniel Silveira. De outro, uma possível mãe (preta e pobre) que jamais poderá levar seu filho para tomar sorvete naquele lugar - afinal, uma casquinha custa R$ 25, equivalente a 2% do salário mínimo - trabalhando em um domingo, em vez de estar, como quase todos ali, desfrutando o dia com sua família. Atenção: ninguém precisa me ensinar como a banda toca, ok?

Os mais ligeiros irão dizer: ‘ora, Ricardo, é assim no mundo todo, inclusive países ricos’. Bem, nos países ricos - e nem tão ricos assim; apenas mais desenvolvidos que a pocilga do Brasil - essa mesma moça poderá, eventualmente, no domingo em que não for trabalhar, levar o filho a uma boa sorveteria, sim, pois além do maior poder de compra, terá a seu lado uma sociedade muito menos preconceituosa.

Morei por seis meses em Nova York no ano passado, e ninguém pode me dizer que a Big Apple é Oslo ou Estocolmo. Ao contrário. Está muito mais para São Paulo e muito menos para Helsinque. Por lá, negros e brancos, pobres e ricos, americanos e imigrantes dividem os mesmos espaços, sem que um ou outro faça caras e bocas pela presença de quem aparenta ser financeiramente inferior. Por lá, dinheiro não tem cor, sexo ou religião.

Não me canso de dizer como o ‘grosso’ de nossa elite é porco! Sim, são nossas elites econômicas, políticas, culturais, empresariais, enfim, os brancos ricos, poderosos, com conhecimento suficiente para compreender nossos problemas e dinheiro suficiente para minorá-los, os maiores - talvez únicos - responsáveis por sermos este poço de miséria, desigualdade, violência e preconceito social que somos. Com ou sem camisa da seleção.

A cena da sorveteria é a expressão da nossa pobreza moral, intelectual e ética. Até hoje não sei se chorei de dor ou de raiva. Ser chorão não me torna melhor do que ninguém, é claro, mas seguramente me faz um pouco, um tiquinho que seja, mais humano que aquela gente verde e amarela risonha, mais atenta a um ministro do STF (branco, rico e poderoso, que não produz nada) do que à gentil moça (preta, pobre e trabalhadora) que limpa as suas mesas porcas. E isso, meus caros e minhas caras, porque era Primeiro de Maio, hein!