Em pouco mais de 7 anos de jornalismo e quase 40 de vida profissional, posso assegurar que já vi, no mundo dos negócios - e deste com o Poder Público -, muita coisa espantosa, mas, sinceramente, o que vai a seguir, leitor amigo, leitora amiga, é de fazer corar o mais experiente, como direi?, lobista (minha vontade era dizer picareta, mas ando meio “pianinho” na veemência). Portanto, como diria o Lito, do canal Aviões e Músicas, “senta que lá vem história”. Mas, antes, tome uma dose cavalar de omeprazol, porque a treta é de revirar estômago de avestruz. Bora lá?
No comecinho dos anos 2000, deu-se início ao loteamento conhecido como Vale dos Cristais, em Nova Lima, a menos de 5 quilômetros de distância do BH Shopping. Planejado para ser um bairro sustentável, de baixa ocupação populacional e caracterizado pelo respeito ao meio ambiente e preservação da paisagem natural, hoje encontra-se totalmente desfigurado de seus propósitos iniciais, uma vez que em forte ritmo de ocupação e adensamento, trânsito caótico, déficit de tratamento de esgoto e palco de gigantesca especulação imobiliária.
ESPANTO I: PATRIMAR/SOMATTOS TÊM DE EXPLICAR
Muito antes do tombamento da Serra do Souza, em 2013, que circunda o Vale dos Cristais, já eram previstas medidas mitigatórias de danos ou grandes impactos ambientais, dentre elas a limitação de unidades multifamiliares, que deveriam “conversar” arquitetonicamente com as montanhas, tendo a altimetria dos edifícios limitada a 4 andares e 16 apartamentos por bloco, no máximo, por exemplo. Uma rápida visita ao loteamento, contudo, mostra evidente que os planos originais foram tratados como são tratadas as nossas riquezas naturais: com absoluto descaso.
Dentre tantos descalabros, chama a atenção - em processo de licenciamento - um empreendimento gigantesco com torres de até 15 andares (superando o limite de 4 andares previsto no licenciamento ambiental do Vale dos Cristais) das empresas Patrimar e Somattos, construtoras de grande porte e influência. Do processo de licenciamento inicial, na Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento (SEMAD), ao Termo de Acordo Judicial (TAJ) firmado com o Ministério Público (MP), a quantidade de inconsistências, incongruências e suspeitas é assustadora.
ESPANTO II: MINISTÉRIO PÚBLICO TEM DE EXPLICAR
Os mesmos agentes, por exemplo, que negaram empreendimentos com altura superior a 4 andares, em duas oportunidades ao menos, em 2011 e 2022, mudaram de opinião (por quê?) e celebraram acordo com as construtoras, permitindo edificações com altura superior à estabelecida, e que impactam sobremaneira a Serra do Souza, objeto, inclusive, de tombamento por alguns destes mesmos membros do MP, anos atrás. Ou seja, o que valeu para alguns empreendedores, há alguns anos, agora já não vale mais. Refaço a pergunta: por quê?
Aliás, foi em uma “reunião confidencial”, sem a participação da sociedade civil ou dos moradores da região, que o Ministério Público e as construtoras celebraram, entre si, mas com validade para todos, um acordo que permitirá, por exemplo, um projeto de 720 apartamentos em local com acesso limitado por uma mini ponte e uma mini rotatória, que "desaguará" na já superlotada MG-30, e com interferência direta com a Serra do Souza, tombada, conforme já dito acima, pelos mesmos servidores públicos que, estranhamente, mudaram de ideia agora.
ESPANTO III: GOVERNO DE MINAS TEM DE EXPLICAR
Antes deste TAJ, contudo, mais “coincidências” que favoreceram as construtoras: o pedido de licenciamento ambiental feito ao estado foi indeferido. Pior: foi objeto de multa por supressão vegetal. Acreditem, mas este mesmo processo “sumiu” da SEMAD e, 15 dias depois, um novo processo (sem as fotos que comprovaram a supressão vegetal) foi apresentado e… aprovado! Sim, em duas semanas, os servidores do estado de Minas Gerais não aprovaram, multaram, aprovaram e não multaram os mesmos projetos e construtoras. Novamente: por quê?
Mas não é só: contrariando decreto municipal, o ex-prefeito Vitor Penido e seu secretário do meio ambiente, à época, emitiram parecer favorável ao empreendimento. Não entenderam? Explico: prefeito e secretário, responsáveis por cumprirem e fazerem cumprir as leis municipais, as ignoraram francamente. De igual sorte, a Anglo Gold Ashanti, proprietária e vendedora das áreas dos empreendimentos - a mesma que constituiu as regras construtivas de forma a obter as licenças ambientais necessárias - também “mudou de opinião”.
ESPANTO IV: ANGLO GOLD TEM DE EXPLICAR
A Anglo comercializou o loteamento com regras claras de construção, não adensamento e obediência à conservação ambiental. Porém, agora, para vender o terreno à Patrimar e à Somattos, esqueceu o que foi dito, prometido e assinado, e reviu as condicionantes que criou e obrigou - inclusive a todos os adquirentes de lotes e apartamentos - a cumprir. Dessa forma, todos os atuais moradores do Vale dos Cristais foram feitos de trouxa, pois levaram gato por lebre, e ainda por cima tiveram de respeitar, durante anos, o que agora não vale mais.
A porteira foi aberta! Anglo e construtoras, com o “de acordo” do Ministério Público, em sentido contrário a tudo o que foi estabelecido anteriormente - inclusive pelo próprio MP e Anglo Gold - poderão transformar o sonho que venderam, décadas atrás, em (mais) pesadelo para os “otários” de boa fé, que acreditaram estar se mudando para um loteamento com rígidas regras construtivas e ambientais, mas que hoje observa falta de tratamento de esgoto, trânsito e caos típicos dos centros urbanos. Em um país relativamente decente, isso teria nome: enganação.
ESPANTO FINAL: ADVOGADO TEM DE EXPLICAR
Para você que conseguiu chegar até aqui, guardei a “cereja do bolo”: em 2004, o Procurador Geral do Município de Nova Lima foi o responsável por assinar o decreto que limitava as construções no Vale dos Cristais a edifícios de no máximo 4 andares, conforme amplamente falado acima. Pois bem. Eis que hoje, curiosa e coincidentemente, este mesmo senhor (um advogado) é quem assina, pela construtora Patrimar, o TAJ com o Ministério Público, que permite construções com até 9 andares. Como é mesmo? “Há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia”.
No campo dos ditados, transcrevo mais um: “No creo en brujas, pero que las hay, las hay”. Quando o Governo do Estado, a Prefeitura do Município, o Ministério Público e algumas das maiores empresas do País confundem-se tanto com leis, decretos e tombamentos, indo e vindo em processos de licenciamentos ambientais e alvarás de construção, eu, como mero cidadão (o pagador de impostos, lembram-se?), me reservo o direito de me preparar para o pior: qualidade de vida mais baixa, custos mais altos e muita raiva dos poderosos de plantão.