Jornal Estado de Minas

RICARDO KERTZMAN

Imóveis: agora, só o TJMG pode evitar novo desastre em Nova Lima

Vou desenhar, leitor amigo, leitora amiga, bem desenhadinho como se todos tivessem 8 anos de idade, para que não reste sombra de dúvida sobre o que tratamos aqui: uma região, uma serra, milhares de habitantes e, no limite, uma cidade inteira à mercê da especulação imobiliária com a complacência do Poder Público. Aliás, ultimamente, ando me questionando se as palavras “poder” e “público” ainda podem caminhar juntas.





Bem, nossa história começa lá em 2004, quando o empreendimento imobiliário Vale dos Cristais, em Nova Lima, foi aprovado pelo estado de Minas Gerais e também pela prefeitura de Nova Lima, com a anuência de uma tal SEDRU - Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Política Urbana e Gestão Metropolitana.

Em tempo: eu não sei vocês, mas quando vejo siglas e órgãos estatais com estes nomes gigantes e pomposos, sinto calafrios só de pensar na quantidade de funcionários e na burocracia ao redor. Como diz o ditado popular, sabiamente por sinal, “o Brasil não é para amadores”. No caso em tela, eu diria que: Nova Lima não é para amadores. Sigamos.

PRESTENÇÃO, HEIN

Peço que leiam, atentamente, este trecho em destaque do licenciamento do Vale dos Cristais, pois além de muito importante, certamente vocês irão se lembrar dele mais à frente: “Para os lotes multifamiliares estão propostos padrões de ocupação de baixa densidade e mínimo impacto visual, que resultam em um máximo de 4 pavimentos e 16 unidades por bloco”. Repitam comigo: um máximo de 4 pavimentos e 16 unidades por bloco. Guardaram?

E mais: “a arquitetura deverá contemplar características de ocupação em encostas, buscando a melhor adequação à paisagem. Essa adequação está diretamente relacionada à imagem do empreendimento, tanto por observação externa (rodovia MG-030), quanto pelos próprios moradores e usuários”.





Pergunto: alguma dúvida sobre as regras construtivas impostas pelo próprio empreendedor, que serviram de base não apenas para as licenças necessárias, mas para a venda dos lotes aos futuros adquirentes, consumidores de boa fé que acreditaram estar comprando um imóvel com estas características?

SE COLAR, COLOU, NÚMERO 1

Ao final de 2010, o empreendedor deu início ao projeto de construção de um conjunto de 6 prédios com 19 andares na região. Oi? Não eram 4 andares no máximo? Pois é. Ignorando completamente o que foi aprovado e vendido, Odebrecht Realizações (OR) e Mineração Morro Velho (AngloGold Ashanti) tentaram um passa-moleque na maior cara de pau. E vocês achavam que a Odebrecht era só petrolão, não é mesmo?

Porém, àquela saudosa época, um providencial e atento Ministério Público (MP) propôs uma ação civil pública (0188.11.003213-6), com pedido liminar, que foi concedida pela Justiça para embargar o projeto das torres. Inconformado, o empreendedor recorreu, mas o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, acertadamente, manteve a decisão. Aplausos.

O fundamento do Judiciário foi claro, diante do óbvio ululante: desconformidade com o licenciamento aprovado. Simples assim. Posteriormente, de forma estratégica, a construtora desistiu da edificação e o processo foi extinto sem a resolução do mérito. Dessa forma, o tão famoso "trânsito em julgado”, que a gente escuta sempre, não ocorreu, e uma sentença definitiva não foi, portanto, proferida a respeito.

2013: TOMBAMENTO DA SERRA DO SOUZA

No ano mais feliz da minha vida, quando o Galão da Massa foi campeão da Libertadores - não, não foi 2006 quando minha filha nasceu -, o município de Nova Lima instituiu, através do decreto 5.319/2013, o Monumento Natural Serra do Souza, unidade de proteção integral, visando evitar outras tentativas de construções que afetassem as belezas naturais da região. Bons tempos em que havia tamanho carinho e respeito por nossas montanhas.





O decreto previa o prazo de 1 ano para a elaboração do chamado Plano de Manejo, conjunto de regras e limites construtivos claros, tudo de acordo com o artigo 27, parágrafo 3º da Lei 9985/00. Porém, pasmem, bravos leitores que chegaram até aqui, mas até hoje, 10 longos anos depois, não existe o tal Plano de Manejo. Alguém pode me explicar por quê?

E não só: tanto o decreto municipal como a lei federal preveem expressamente a impossibilidade de qualquer construção - salvo as que visem resguardar a unidade protegida - na ausência do referido Plano (artigo 3º, parágrafo único do Decreto, e artigo 28, parágrafo único da Lei Federal 9985/00. Traduzindo para o mineirês: num pódi construí nada sem es diacho de planu di maneju). 

SE COLAR, COLOU, NÚMERO 2

“O tempo passa, o tempo voa e a poupança Bamerindus continua numa boa” (só os véin com mais de 50 anos entenderão, hehe). Bem, o Bamerindus (banco) quebrou, mas o apetite por especulação imobiliária, não. Em 2020, duas construtoras, com a cumplicidade da proprietária da área (AngloGold), voltaram à carga e tentaram “tratorar” outro projeto em desconformidade com o licenciamento ambiental e o tombamento da Serra.

Patrimar e Somattos, através de uma SPE (Sociedade de Propósito Específico), protocolizaram o LAS (Licenciamento Ambiental Simplificado) 1634, para a construção de unidades familiares na mesma região. A SEMAD (Secretaria do Estado do Meio Ambiente e Desenvolvimento), contudo, corretamente indeferiu o processo.





Os motivos foram diversos, mas o mais grave foi a constatação de “supressão vegetal nativa do bioma Mata Atlântica”. E vocês sabem, né? No Brasil, Mata Atlântica e Mico-Leão Dourado são mais sagrados que mãe. Importante: os “ishpertinhos” não informaram ao estado a presença da mãe, digo do bioma. Sim, omitiram do estado uma informação imprescindível. 

MAS… DESSA VEZ COLOU

Vá saber por que - eu sei, mas não vou contar - a empresa optou por não recorrer da decisão de indeferimento. Ao contrário. Protocolizou um novo pedido (2725/20), informando que pretendia edificar nada mais, nada menos que 5 torres de 15 andares cada, com 304 unidades e 750 vagas de estacionamento. Alguém aí ainda se lembra dos tais 4 andares e 16 unidades por bloco?

Especulação Imobiliária sem freio (foto: Reprodução/Youtube/Lord Drone)
Bom, a SEMAD não lembrou e… deferiu o empreendimento. E não se lembrou também da mãe - tá certo, Mata Atlântica -  e de um tal RIC (Relatório de Impacto de Circulação), exigido pelo artigo 2º da Deliberação Normativa COPAM 222/2018, algo que impediu o deferimento anterior. Pode isso, Arnaldo? Burro que sou, acho que não.

Mesmo com o porte do projeto, as construtoras declararam: “O empreendimento não causará impacto na circulação viária no município de Belo Horizonte”. Lembrando que BH fica a pouco mais de 5 km do local, pergunto: será que os super, ultra, mega, hiper empresários se deslocam de carro pela região ou apenas em aeronaves que “avuam”?

SENTA QUE TEM MAIS

Vocês já ouviram falar em “critério locacional”? Nem eu. Mas um passarinho me soprou que na locação (área) do projeto existem três: Monumento Natural da Serra do Souza (área de proteção integral), Reserva Particular do Patrimônio Natural Vale dos Cristais e Estação Ecológica do Cercadinho. “Mas que diabos é isso, Ricardo”?

Bem, trata-se dos riscos inerentes às edificações vizinhas às áreas de proteção ambiental, como no caso. Quando isso ocorre, a lei determina a impossibilidade de licenciamento simplificado (LAS). Mais uma vez, os “ishpertinhos” não informaram à SEMAD as três "reservas" acima. E fizeram isso nas duas vezes.





Além disso, se tudo acima já não fosse suficiente para minha gastrite implorar por um omeprazol de 1kg, os empreendedores omitiram a infraestrutura viária disponível, qual seja, uma mini ponte, uma mini rotatória, uma pista simples - sem acostamento - e a congestionada rodovia MG-030. Caberiam aí mais 750 veículos fixos, além dos milhares de rotativos?

E O QUE DIZ A LEI

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) já decidiu acerca das regras do licenciamento do Vale dos Cristais (os famosos 4 andares etc.). E mais: em caso de ampliação do empreendimento, “... características de porte e potencial poluidor/degradador de tais ampliações poderão se regularizar por LAC1, a critério do órgão ambiental”.

Confuso, né? Só que não. Seguinte: o projeto em tela não poderia jamais ser solicitado e aprovado por Licenciamento Ambiental Simplificado (LAS), mas foi. E é dever dos empreendedores e do estado explicarem tal fato. Aliás, a própria AngloGold, que lá atrás limitou as construções a 4 andares, tem de se explicar também.

E por falar em explicações, chegou a hora de falarmos do Ministério Público. Com a devida vênia - não é assim que os operadores do direito falam quando querem discordar educadamente de alguém? -, por que o MP celebrou acordo em sentido contrário à lei e ao que ele próprio já havia decidido, ferrenha e corretamente, durante anos?

ALÔ, MP: QUERO TE OUVIR

Durante 13 anos seguidos, o Ministério Público vinha sustentando e decidindo conforme estabelecido pelo Judiciário. Porém, em acordo judicial “sigiloso” no âmbito do COMPOR (sigla para Centro de Autocomposição de Conflitos e Segurança Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais)
que diabos é isso, afinal?), o MP, o estado de Minas Gerais, o município de Nova Lima e os empreendedores (Patrimar e Somattos) mudaram completamente o rumo da prosa.





Sem a participação dos moradores, entidades ambientais, sociedade civil, enfim, sem ouvir ninguém, desconsideraram o Decreto de Tombamento, a ausência do Plano de Manejo, a limitação imposta pelo empreendedor, a decisão judicial anterior que suspendera as torres e até mesmo o próprio Ministério Público (durante anos) e mandaram o chamegão, permitindo construções superiores a 4 andares.

Amigos, ou estamos diante de um caso de amnésia coletiva dos doutores do MP, que lá atrás e durante uma década participaram ativamente do tombamento, das decisões que impediram construções acima de 4 andares e tudo mais, como legítimos protetores do meio ambiente que são, ou estamos diante de uma daqueles jabuticabas que apenas o Brasil tem.

SÓ O TJ NA CAUSA

Tomo emprestado o mantra bolsonarista, repetido à exaustão durante meses - agora que a eleição passou, acho que posso brincar sem ser xingado, né? - e peço SOS não às Forças Armadas, claro, mas ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, pois foi “quem” me sobrou para pedir ajuda.





Sim, porque quando os Poderes Executivos Municipal e Estadual, construtoras renomadas (do porte e da excelência de uma Patrimar e uma Somattos) e o Ministério Público se esquecem dos cidadãos comuns, do meio ambiente, do trânsito caótico e de tudo o que escreveram e assinaram no verão passado, só me resta as barbas - brancas e honradas - do Poder Judiciário.

Sendo assim: SOS, TJMG! A Serra do Souza, o Vale dos Cristais, o Cercadinho, a MG-030, Nova Lima e BH (Belvedere e região) estão abandonados à própria sorte e à mercê da especulação imobiliária desenfreada que tomou conta da região. Como é mesmo: “Ainda há juízes em Berlim?”. Bom, se há (na Alemanha) eu não sei, mas por aqui, sim, seguramente há. Ou ao menos assim espero.