“Autofagia é um processo celular fisiológico para degradação e reciclagem de componentes do citosol e organelas celulares danificadas, para manutenção da homeostase celular em condições adversas como privação de nutrientes, presença de patógenos e toxinas”. Entendeu alguma coisa, leitor amigo, leitora amiga? Nem eu. Mas tá lá no Google e eu achei legal transcrever, hehe.
Agora, sem brincadeira, popularmente falando, autofagia é um processo de autodestruição, tipo a gente quando entope as artérias de gordura, comendo torresmo e picanha, ou envenena os próprios pulmões, inalando substâncias tóxicas sob a forma de cigarros e outras porcarias. Pois bem. De tempos em tempos, o Poder Judiciário atenta contra si mesmo e corrói mais um pouco do que lhe sobrou de credibilidade.
LADEIRA ABAIXO
Após atingir o ápice de popularidade durante o processo do Mensalão, o Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima e mais representativa do Judiciário, entrou em uma espiral de declínio, expondo publicamente rusgas e intrigas inadmissíveis a uma Suprema Corte de respeito. Além disso, decisões explicitamente políticas, muitas delas em franco desacordo com a própria Constituição, rebaixaram drasticamente a Instituição.
Seguidos escândalos de vendas de sentenças, uso e abuso de poder por juízes, desembargadores e ministros, aumento de salários e benefícios, aposentadorias especiais, impunidade e corporativismo, enfim, uma saraivada de notícias indecorosas, que atingiram indiscriminadamente o Poder Judiciário nos últimos anos, atiraram a credibilidade da Justiça no fundo do poço - poço este coberto de lama até o topo.
PGR PRA QUÊ
O bolsonarismo - e seu líder em pessoa - atentaram sistematicamente contra o Poder Judiciário, incentivando desavergonhadamente, sob os olhos cegos e ouvidos surdos da Procuradoria Geral da República, o fechamento do STF, fato que ajudou a culminar no infame 8 de janeiro passado. Onde estavam os senhores Augusto Aras e Lindôra Araújo todo esse tempo? Só Deus sabe, pois a democracia não os viu.
No sentido amplo, geral, irrestrito e popular da autofagia, eis que a vice-Procuradora Geral da República, Lindôra Araújo, resolveu pedir a prisão do ex-juiz federal, ex-ministro da Justiça e atual senador Sergio Moro, por causa de um “vídeo 5ª série”, filmado em uma festa junina, onde Moro brinca de “polícia e ladrão” com convidados, e com um copo de bebida nas mãos faz piada (de mau gosto, é verdade) com Gilmar Mendes.
CRIME?
O maridão da conja fala em “comprar um habeas corpus do Gilmar”, numa referência clara ao ministro Gilmar Mendes, do STF. E aí vem o primeiro dos absurdos da Dra. Lindôra: não há crime sem objeto definido! A lei penal é objetiva e não condena ninguém baseado em ironias e ilações. Basta Moro perguntar, em juízo, à sua acusadora, qual “habeas corpus do Gilmar” ele está se referindo?, já que ele mesmo não nominou.
Além do mais, como escreveu o colega de Lava Jato e de Parlamento de Sergio Moro, o ex-procurador e atual deputado federal Deltan Dallagnol, desde 2018, o STF só pode processar e julgar parlamentares por crimes cometidos durante o exercício do mandato e relacionados à função. Obviamente, falar besteira, bêbado, em festa junina, não se enquadra nisso. Ou seja, não há o chamado fato determinado.
AUTOFAGIA
Aliás, se isso fosse crime, Gilmar Mendes é quem estaria em maus lençóis, pois cansou de chamar a turma da Lava Jato de gangsters, quadrilha, corruptos e outras ofensas. Mas o pior disso tudo é que, diante do absurdo legal e da seletividade política da vice-PGR, o caso serviu para inflamar os extremistas de direita, que obviamente saíram em defesa de Moro, atacando o Judiciário, esquecendo-se de afetos e desafetos anteriores.
Lindôra, que sistematicamente fechou os olhos para as barbáries do bolsonarismo, agora pisca para a vingança do lulopetismo, flutuando pela ótica de “estar onde o Poder está”. Sua atitude destrambelhada é mais uma pitada autofágica, que torna pior o que já é ruim, e joga luz sobre as decisões políticas de um Poder que deveria guiar-se pelas leis, e não por interesses pessoais e canetadas de ocasião.