Jornal Estado de Minas

RICARDO KERTZMAN

Assédio sexual: banalizado no Brasil, mais um caso termina em tragédia

Maria Helena está com 51 anos. Mãe de duas moças adolescentes, aposentou-se aos 35, por invalidez. Uma depressão persistente e crises quase diárias de síndrome do pânico a impediram de continuar trabalhando no setor de serviços. Sua saúde mental e emocional, à época, não apenas ceifou precocemente sua carreira como dificultou sobremaneira a criação de suas filhas recém-nascidas.





Maria Helena tem uma amiga, Júlia, e apesar da grande diferença de idade (são 20 anos a separá-las) dão-se tão bem como se fossem companheiras de infância. Ambas se encontram semanalmente, em uma sessão de terapia em grupo, destinada a amparar e a apoiar vítimas de assédio e abuso sexual. Ao lado de outras seis mulheres, incluindo duas jovens, de 18 e 19 anos, tentam tornar a vida menos sofrida.

O leitor e a leitora mais atentos perceberão que estamos falando, no caso de Maria Helena, de um crime ocorrido há quase 20 anos. Ela foi assediada e abusada sexualmente, em seu local de trabalho, quando tinha 32 anos. Como já dito, com 35, obteve a aposentadoria, não sem antes percorrer um árduo e sofrido caminho burocrático pelas entranhas do INSS. Hoje, recebe 2 salários mínimos e meio (1/4 do que ganharia se na ativa).

TRAGÉDIA NACIONAL

Maria Helena é apenas um caso dentre milhares, ou talvez milhões, de outros semelhantes - e ainda piores - ocorridos anualmente no Brasil. Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Avançada), são 822 mil casos de estupro por ano no País. Dados disponíveis no site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) são ainda mais alarmantes e assustadores.





Por lá, encontramos números da pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, realizada pelo Datafolha, que mostra que 37,9% das brasileiras foram vítimas de algum tipo de assédio sexual nos últimos doze meses (cerca de 26,5 milhões de mulheres). Aliás, como não recordar de recente episódio ocorrido na Presidência de um dos maiores bancos do País, a Caixa? 

Para quem não se lembra, Pedro Guimarães, então presidente e amigo próximo de Jair Bolsonaro, pediu demissão, em junho do ano passado, em meio a dezenas de acusações de assédio sexual, supostamente cometidos entre 2019 e 2022. Atualmente, o ex-executivo é réu em ação penal e seu processo corre sob sigilo de Justiça na 15ª Vara Federal de Brasília. 

SEQUELAS E MORTES


Se barbaridades assim ocorrem na capital federal, em uma empresa do porte da Caixa, em altíssimo escalão, imaginem o que se passa no chamado “Brasil Profundo”. Com quase 6 mil municípios, espalhados por 26 estados mais o Distrito Federal, nosso País conta com um dos maiores índices mundiais de assédio sexual no local de trabalho. Nesta quarta-feira (14/6), veio à tona mais um caso que, desta vez, não deixou sequelas psicológicas e emocionais à vítima, pois, lamentavelmente, terminou em morte.

Uma jovem escrivã, de apenas 32 anos, não suportou o assédio brutal que sofria em uma delegacia de polícia de Carandaí (MG) e cometeu suicídio. Ao contrário de Maria Helena, Rafaela Drummond não resistiu à pressão. E ao contrário de ambas, neste exato momento, mulheres impotentes encontram-se subjugadas por criminosos que abusam da autoridade, do poder, do dinheiro e da própria característica do trabalho para mantê-las “escravas sexuais”.





Uma mulher abusada - e quanto mais jovem, pior - carregará para sempre feridas incuráveis, que se mostrarão presentes a cada dia, sob a forma de doenças mentais, emocionais, psicossomáticas e, no limite, do autoextermínio. O assédio sexual é um crime inominável, e tanto pior se seguido de abuso físico, de contato, de… estupro! Deveria fazer parte dos chamados crimes hediondos, inafiançáveis sob quaisquer atenuantes, porque a “porta de entrada” para o estupro.

CADÊ O ESTADO?


Há males que poderiam - e podem - ser evitados a partir da devida atenção e atuação do Poder Público - lei-se, neste caso, Legislativo e Judiciário. O assédio precisa ser tratado de forma mais severa pela Lei, assim como as denúncias precisam ser levadas verdadeiramente à sério pelas autoridades policiais. No âmbito trabalhista, uma lei recentemente aprovada no Congresso Nacional introduziu o assédio sexual às tais CIPAS (Comissões Internas de Prevenção de Acidentes). É um passo.

Sou pai de uma filha, hoje com 17 anos, prestes a adentrar ao mercado de trabalho. Ela é privilegiada em todos os aspectos e dificilmente será vítima de assédio sexual onde escolher trabalhar. Por quê? Bem, notem o verbo que usei: escolher. Minha filha, sendo bem-cuidada, bem-escolarizada, gozando de boa saúde física e mental (ainda que o “papis” seja meio lelé da cuca), pertencendo à elite da sociedade poderá escolher onde trabalhar.





Mas esta é a realidade da minoria da minoria das jovens do Brasil. Escolher o emprego? Ter segurança e coragem para dizer NÃO a um cretino abusador e denunciá-lo? Conhecer as leis e saber como e onde buscá-las? Contar com pais atenciosos e vigilantes? Não, meus caros e minhas caras. Infelizmente, não é assim que a banda toca, principalmente em cidades menores, em regiões carentes, em empregos precários. Como sociedade que se pretende minimamente civilizada, é imperativa a mudança de prosa.

ENCERRANDO


Basta de tolerância e justificativas para o injustificável. Basta de omissão e leniência com assédio e assediadores. Basta de relativização e tergiversação. Basta de Maria Helenas, de Júlias (estas fictícias, ainda que reais sob outros nomes) e Rafaelas - de carne e osso. Ou mudamos já, como indivíduos e sociedade, e aprisionamos em jaulas os selvagens, ou continuaremos o paraíso do trogloditas, que olham para nossas mulheres e satisfazem, livremente, seus desejos sexuais, à força, seja física ou psicológica, enquanto destroem a vida de suas vítimas.