Maria Helena está com 51 anos. Mãe de duas moças adolescentes, aposentou-se aos 35, por invalidez. Uma depressão persistente e crises quase diárias de síndrome do pânico a impediram de continuar trabalhando no setor de serviços. Sua saúde mental e emocional, à época, não apenas ceifou precocemente sua carreira como dificultou sobremaneira a criação de suas filhas recém-nascidas.
Maria Helena tem uma amiga, Júlia, e apesar da grande diferença de idade (são 20 anos a separá-las) dão-se tão bem como se fossem companheiras de infância. Ambas se encontram semanalmente, em uma sessão de terapia em grupo, destinada a amparar e a apoiar vítimas de assédio e abuso sexual. Ao lado de outras seis mulheres, incluindo duas jovens, de 18 e 19 anos, tentam tornar a vida menos sofrida.
O leitor e a leitora mais atentos perceberão que estamos falando, no caso de Maria Helena, de um crime ocorrido há quase 20 anos. Ela foi assediada e abusada sexualmente, em seu local de trabalho, quando tinha 32 anos. Como já dito, com 35, obteve a aposentadoria, não sem antes percorrer um árduo e sofrido caminho burocrático pelas entranhas do INSS. Hoje, recebe 2 salários mínimos e meio (1/4 do que ganharia se na ativa).
TRAGÉDIA NACIONAL
Maria Helena é apenas um caso dentre milhares, ou talvez milhões, de outros semelhantes - e ainda piores - ocorridos anualmente no Brasil. Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Avançada), são 822 mil casos de estupro por ano no País. Dados disponíveis no site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) são ainda mais alarmantes e assustadores.
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SEQUELAS E MORTES
Se barbaridades assim ocorrem na capital federal, em uma empresa do porte da Caixa, em altíssimo escalão, imaginem o que se passa no chamado “Brasil Profundo”. Com quase 6 mil municípios, espalhados por 26 estados mais o Distrito Federal, nosso País conta com um dos maiores índices mundiais de assédio sexual no local de trabalho. Nesta quarta-feira (14/6), veio à tona mais um caso que, desta vez, não deixou sequelas psicológicas e emocionais à vítima, pois, lamentavelmente, terminou em morte.
Uma jovem escrivã, de apenas 32 anos, não suportou o assédio brutal que sofria em uma delegacia de polícia de Carandaí (MG) e cometeu suicídio. Ao contrário de Maria Helena, Rafaela Drummond não resistiu à pressão. E ao contrário de ambas, neste exato momento, mulheres impotentes encontram-se subjugadas por criminosos que abusam da autoridade, do poder, do dinheiro e da própria característica do trabalho para mantê-las “escravas sexuais”.
Uma mulher abusada - e quanto mais jovem, pior - carregará para sempre feridas incuráveis, que se mostrarão presentes a cada dia, sob a forma de doenças mentais, emocionais, psicossomáticas e, no limite, do autoextermínio. O assédio sexual é um crime inominável, e tanto pior se seguido de abuso físico, de contato, de… estupro! Deveria fazer parte dos chamados crimes hediondos, inafiançáveis sob quaisquer atenuantes, porque a “porta de entrada” para o estupro.
CADÊ O ESTADO?
Há males que poderiam - e podem - ser evitados a partir da devida atenção e atuação do Poder Público - lei-se, neste caso, Legislativo e Judiciário. O assédio precisa ser tratado de forma mais severa pela Lei, assim como as denúncias precisam ser levadas verdadeiramente à sério pelas autoridades policiais. No âmbito trabalhista, uma lei recentemente aprovada no Congresso Nacional introduziu o assédio sexual às tais CIPAS (Comissões Internas de Prevenção de Acidentes). É um passo.
Mas esta é a realidade da minoria da minoria das jovens do Brasil. Escolher o emprego? Ter segurança e coragem para dizer NÃO a um cretino abusador e denunciá-lo? Conhecer as leis e saber como e onde buscá-las? Contar com pais atenciosos e vigilantes? Não, meus caros e minhas caras. Infelizmente, não é assim que a banda toca, principalmente em cidades menores, em regiões carentes, em empregos precários. Como sociedade que se pretende minimamente civilizada, é imperativa a mudança de prosa.
ENCERRANDO
Basta de tolerância e justificativas para o injustificável. Basta de omissão e leniência com assédio e assediadores. Basta de relativização e tergiversação. Basta de Maria Helenas, de Júlias (estas fictícias, ainda que reais sob outros nomes) e Rafaelas - de carne e osso. Ou mudamos já, como indivíduos e sociedade, e aprisionamos em jaulas os selvagens, ou continuaremos o paraíso do trogloditas, que olham para nossas mulheres e satisfazem, livremente, seus desejos sexuais, à força, seja física ou psicológica, enquanto destroem a vida de suas vítimas.