Uma das muitas definições de política, mas certamente a mais contundente, é que ela é o contrário da barbárie. O processo civilizatório ao longo de muitos séculos foi criando mecanismos pelos quais os conflitos individuais e coletivos passaram a ser resolvidos não pela força ou pela violência, mas por meio de regras previamente estabelecidas e por autoridades reconhecidas pela maioria. As lutas deixaram o campo aberto e foram levadas para as vias impessoais das instituições. Isto é a política.
Nos estágios mais altos da civilização, a política, no seu escopo de mobilizar as sociedades para o objetivo de elevar a prosperidade e reduzir as desigualdades, age para evitar que os conflitos se tornem abertos e tomem corpo para pressionar as instituições com demandas que são difíceis de lidar, tais as que dizem respeito à cultura ou religião.
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Eleições para a Câmara dos Deputados: uma ilusão democráticaO Brasil não é mais o mesmoEstaremos embarcando numa viagem sem destino nas eleições de outubroTransição para a realidadeAs últimas eleições no Brasil, entre muitas outras coisas, mostraram que entre nós a política deixou de funcionar como instrumento civilizatório. Nunca desde a redemocratização, nem mesmo no período entre 1946 e 1964, a competição política foi tão polarizada nem tornou expostas divisões tão irreconciliáveis na sociedade brasileira. E polarização e divisão a respeito de uma pauta completamente artificial, criada e sustentada para servir exclusivamente a interesses eleitorais e desviar a atenção de todos para nossos problemas substantivos.
A pobreza do debate político e a ausência de qualquer discussão relevante e séria sobre nossa falta de crescimento, que se arrasta por 40 anos, a imensa pobreza da maioria da população, a ausência de perspectiva de quase toda a juventude do país, tudo isto passou longe dos programas, dos discursos e dos debates. A circulação de mentiras por todos os lados, obrigando a Justiça Eleitoral a monitorar o esgoto a céu aberto em que se transformaram as redes sociais e a internet, o ódio e o estranhamento entre os amigos e as famílias, tudo isto aponta para uma sociedade perdida.
Vivi muito tempo e participei de muitas eleições. Perdi quase todas, a ponto de me acostumar com as derrotas. Mas desta vez meu sentimento de perda ultrapassou tudo o que eu já senti, porque, do meu ponto de vista, qualquer que fosse o resultado das urnas toda a população do país já estava derrotada.
O resultado apertado, a composição do Congresso e os sinais de mobilização permanente de grupos antidemocráticos que até agora não haviam demonstrado um mínimo de força, apontam para um governo difícil para o presidente Lula. Ele tem dois desafios gigantescos. O primeiro será criar as condições para que o país volte a crescer. Para isto terá que vencer o conservadorismo fiscal dos mercados e da mídia, que colocam a estabilidade acima do crescimento, indiferentes à pobreza de 90% da população. Mas terá também de vencer a cartilha econômica dos anos 1950 que faz parte da alma do seu partido.
Além de uma gestão econômica audaciosa, embora responsável, terá que liderar reformas que, começando com o fim definitivo da reeleição, deem lugar a um sistema político mais verdadeiro e representativo, onde haja lugar também para os bons cidadãos, e não apenas para os aventureiros, os mercadores da boa fé dos humildes e os agentes de negócios.
Ficou claro que nenhum grupo político tem maioria. Grande parte dos eleitores não votou a favor, mas sim contra. O que pode reunir a todos seria o crescimento e a luta contra a pobreza e a desigualdade. Toda a pauta de costumes, sejam as reacionárias ou as de vanguarda, tem que ficar longe do governo e da política.
Para o bem de todos é preciso pôr enfim uma pedra sobre tudo o que nos separa.