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A linguagem de sinais do universo

Sigo tropeçando em borboletas, hibiscos mutantes e outras setas amarelas, indicativas de uma nova trajetória da vida


27/12/2020 04:00 - atualizado 27/12/2020 08:11


Na passagem para 2021, entrarei na Nova Era com a forte intenção de cumprir o meu propósito de vida,  minha meta dourada, meu Golden Goal. Diferentemente das promessas de ano novo, essa não será ignorada já no segundo dia de janeiro. Nem adianta tentar esquecer o combinado. Desde que descobri o meu grande objetivo no último retiro espiritual do México, venho recebendo discretos bilhetinhos do Cosmos.
 
Digo isso porque acabou de acontecer comigo agora, em tempo real, enquanto ditava crônica no gravador do celular. Quase sou atropelada por um casal de canarinhos, de cor amarelo-ouro, que me alertam sobre a meta dourada. Ao me desviar dos dois, levanto a cabeça e dou de cara com um portão, do outro lado da rua, pintado de amarelo bem vibrante. Não é um tom comum de se ver na fachada de uma casa.
 
Ok, entendido o recado. Respiro fundo e sigo minha caminhada matinal pelo bairro, de máscara, alternando entre os passeios menos cheios de gente. Só se descobre o caminho caminhando. O primeiro passo é se reconhecer como uma buscadora. Ter vontade de alcançar algo maior. Então, vem o desafio de traçar a sua meta dourada, pedindo ajuda a uma tutora ou consultando o seu mestre interior. “O que você quer?”, é a pergunta recorrente nos consultórios dos psicanalistas.
 
No meu caso, o ponto de partida é o desejo de ajudar as pessoas a descobrirem os seus reais desejos, aqueles que nenhum dinheiro pode comprar. Nesse momento, abro parênteses para dar passagem a uma borboleta amarela e alaranjada, numa combinação improvável na natureza. Interpreto como um aviso. Vamos unir nossa meta amarela à cor laranja da Nova Era, que dará lugar à força do útero, à flexibilidade, diplomacia e jogo de cintura das mulheres.
 
Sigo andando, distraída. Ao atravessar a avenida, vejo uma pequena árvore com três hibiscos. A flor, que costuma ser cor-de-rosa, desta vez é amarela. Eu juro. Para que eu não tenha dúvidas em relação à meta dourada, o canteiro embaixo do pé de hibisco está enfeitado com margaridas. Nem vou falar a cor, para que não pensem que estou inventando.
 
Nem só da natureza vêm os sinais. Outro dia, ouvi o conselho da pediatra Filomena Camilo do Vale, a querida Dra. Filó. Na entrevista ao canal do YouTube Chá Com Leveza, a médica recomendou rezar o terço, conversar com Deus, pedir conselhos. “É preciso dobrar os joelhos, porque eles te levam onde os pés não alcançam“, ensina.
 
Sensibilizada, fiz o que a Filó pediu. Respirei fundo e perguntei a Deus se eu estava no caminho certo, pedi para que ele me mostrasse a verdade. Naquela noite, eu estava dentro do hospital, acompanhando uma pessoa querida. Naquele mesmo momento, o médico entrou no quarto pedindo para conferir os exames de saúde. A papelada havia sido guardada em uma pasta de plástico, dessas que se ganha em congressos, com propagandas. Na parte de baixo, meio escondida, havia a inscrição: “Eu acredito. E você?”.
 
Parece mágica. Talvez seja mesmo, mas os truques só existem para quem acredita neles ou está disposto a participar do espetáculo. Os exemplos são vários. Vou me lembrando de alguns deles enquanto faço o trajeto de volta, a pé. O mais significativo aconteceu durante a organização radical da casa, logo no início da pandemia. Ao destralhar o quarto da bagunça, lotado de brinquedos que os meninos já não usam, livros e cadernos da escola e até uma poltrona de amamentação, abriu-se um espaço para o home office.
 
Ao decorar o novo escritório, escolhi uma estante amarela, que estava em promoção devido à cor diferentona. Era a última do estoque. Estava ali, reservada, me esperando chegar na loja. No improviso, surgia o meu Canto Amarelinho, antes mesmo de eu saber da existência da meta dourada. É curioso pensar que ela já era presente, embora eu ainda não conseguisse visualizar o todo. Agora, minha mesa de trabalho está decorada com post its do mesmo tom, com alertas diversos sobre a Golden Goal.
 
Ao remexer nas caixas da memória, no alto dos armários, localizei um texto que escrevi na época da Faculdade de Comunicação Social, quase 30 anos atrás. Vejam que incrível: “No meio de tantos carros, poluição e gente sem tempo, havia um jornalista à procura de matéria. Foi quando ele descobriu a flor amarela. E escreveu sobre ela, perfume e cor. E veio gente de todo canto acreditar no encanto da flor que era bela. E ela virou canteiro, que virou plantação, que virou ponta de esperança na confusão da cidade. O mundo tornou-se menos cinza. E brotou alegria no coração das gentes sem tempo. A folha do jornal havia virado semente".
 
Já quase chegando, vejo que a árvore da esquina tornou a florir. É uma pena que não dê para publicar as provas aqui na coluna. Na verdade, nem daria para fotografar os meus achados, pois o celular está sendo usado como gravador. Aprendi a técnica com o saudoso Angelo Machado, autor de livros infantis e peças teatrais divertidíssimas. Na época, levei meus meninos para conhecerem o autor das histórias de que eles gostavam, como O dilema do bicho-pau, além da sua famosa coleção de libélulas.
Durante a excursão pela casa dele, na região da Pampulha, o professor me contou sobre o seu processo de criação literária. Andava pela casa com sua muleta e um gravador portátil onde anotava as ideias de textos, antes que elas fugissem da memória. Com seu jeito engraçado, ele confessou que as melhores ideias vinham quando estava tomando banho, relaxado na banheira. No cômodo seguinte, fomos apresentados a uma parte de sua famosa coleção de libélulas e também ao espécime que serviu de inspiração para o livro O borboleta Atíria. A autora, Lúcia Machado de Almeida, era tia do professor Angelo Machado.
 
Gratidão ao legado deixado pelo biólogo e professor da UFMG, entre livros, libélulas e lúdicas peças de teatro, a exemplo da Como sobreviver a festas e recepções com bufett escasso. Graças a ele, estou ditando essa crônica no meu celular, falando sozinha pelas ruas mais desertas do bairro. Sigo tropeçando em borboletas, hibiscos mutantes e outras setas amarelas, indicativas de uma nova trajetória da vida.

* Sandra Kiefer assina esta coluna quinzenalmente

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