Jornal Estado de Minas

mais LEVE

Livres de monstros imaginários




Quem disse que os adultos é que ensinam às crianças? Veja o que aconteceu comigo dia desses. “Bora, mamãe!”, convida o caçula, chamando-me para brincar. “Só se for agora”, respondo, sentindo-me imediatamente desatualizada no modo de falar.



Deveria ter dito “beleza”. ‘Belê’ pareceria forçado. Mas o autojulgamento dura pouco tempo. O menino já está descendo a escada para o quintal. Corro atrás.

Na falta dos colegas da aula on-line, vai a mãe mesmo. Joga para o alto a idade, a dor na planta do pé e os muitos quilos de obrigações. ‘Sem problemas’, diria ela. ‘Tá de boa’, diria ele. Nada é mais importante (e gostoso) do que brincar com os filhos. Chega de tentar racionalizar a situação. É hora de agir com o coração.
 
O menino já está lá do outro lado, fugindo de um inimigo imaginário ou, melhor dizendo, inventado. Ela descobre que um terrível monstro verde habita em nosso jardim. O bicho tem até nome: Pietro Verde Musgo. Ele se revela em todos os objetos esverdeados encontrados ao redor.

Pode assumir a forma do balde de lavar roupa, do implacável regador grande ou da insuspeita bola de plástico, meio murcha, esquecida embaixo do pé de jabuticaba.

Uma das piores manifestações de Pietro Verde Musgo é, sem dúvida alguma, a gigantesca mangueira de molhar as plantas. Sorrateira, a enorme sucuri se disfarça entre as folhagens. Pode ser acordada a qualquer momento, caso alguém abra a torneira. Socorro! Nós dois saímos correndo, aos gritos.





Durante a corrida, passa pela minha mente a necessidade de explicar depois para a vizinha o motivo do berreiro – deveria substituir o termo por ‘barraco’? Deixa pra lá. Após mais de um ano de quarentena, ela já deve estar acostumada com a criatividade alheia.

Quase tropeço no excesso de pensamentos. Sou salva pelo pequeno, antes de tropicar na corda-cobra. Com a sua ajuda, consigo saltar sobre o avatar (agora, mandei bem!). Não há tempo para comemorações. Logo somos surpreendidos pelo balde da área da lavanderia.

Antes que a mãe possa cair dura, o filho descobre uma maneira de escapar do infeliz. Puxa a toalha do varal, que rapidamente se transforma no manto da invisibilidade. Cansada de tanto correr, a mãe ganha alguns minutos de sossego, debaixo da cabana felpuda. Pausa para suspiro. Precisava mesmo ser a toalha branca?

Fazer o quê? Protegidos pela capa mágica, nossos heróis fogem novamente, mas desta vez caminhando, graças a Deus! Na ponta dos pés, a dupla consegue despistar Pietro Verde Musgo. Ele nem desconfia daqueles dois estranhos seres, andando desgovernados pelo seu território, sem enxergar nada. Só a cabeça está coberta pela toalha, mas quem liga? Nosso disfarce é perfeito.





Meio morta, a mãe aproveita a calmaria para elaborar um possível desfecho para a brincadeira. ‘Filho, que tal a gente sentar na rede e descascar umas laranjas?’, pensa em sugerir ao pequeno, mas considera a oferta insuficiente. Lamenta não ter sobrado uma gota de sorvete no freezer, argumento que costuma ser infalível.

Seu cérebro já não funciona mais depois de tanto esforço físico. Num ato insano de luta pela sobrevivência, a mãe propõe um plano para exterminar Pietro Verde Musgo. “Sim, nós vamos conseguir acabar com ele!”, ela tenta entusiasmar o filho. “Podemos trabalhar em equipe!”, completa, tentando inserir um componente pedagógico na diversão. Como são bobas as mães!

Felizmente, o filho concorda que é necessário tomar providência a respeito de Pietro. A situação passou dos li- mites. No auge do desespero, a mãe apela para o desentupidor de pia, que a partir de agora será usado como arma. E vai atrás da fera, pronta para a bata- lha. Já está preparada para atirar o pau no gato, mas o filho segura o seu braço.

“Não faça isso, mamãe. Tenho uma ideia melhor”, diz. Decidido, ergue a bola verde na altura da cabeça, esquece todos os medos e encara a fera. Olha bem no olho de Pietro Verde Musgo e ordena, com voz de comando: “Você precisa parar com isso. Anda, volte a ser do bem. A-go-ra!”

A mãe fica sem reação diante da atitude do menino, inédita para a geração beligerante dela. “É isso aí!”, apoia o filho, encantada. Tem vontade de abraçá-lo forte, mas não pode sair do perso- nagem. Resta admirar o gesto do filho, que já começou a mudar o mundo. Sim, temos muito o que aprender com nossas crianças.

Epílogo: Pietro é derrotado. Mãe e filho balançam na rede, de pernas para o ar, com a bacia de laranjas no colo. Estão no bagaço, mas livres de monstros. Leves como nunca.

Saiba mais sobre xamanismo no canal
Chá Com Leveza (https://youtu.be/-Rr0i8i8_KM)
*Sandra Kiefer assina esta coluna quinzenalmente




audima