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Meu dia girou em torno de uma melancia

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Meu dia girou em torno de uma melancia. Começou quando parei com a minha mãe na padaria. Como não havia vagas na porta, fiquei esperando no carro. Ela voltou com seis pães de sal e chicletes de melancia. Tive uma sensação de déjà-vu. A mesma cena se repetia desde a minha infância, exceto pelo sabor inusitado da goma de mascar.





Vi um flash de mamãe saindo da padaria com as crianças, de mãos dadas, com a bolsa cheia de doces e balas. Parecia uma fada. Com sua varinha mágica, transformava moedas de 10 centavos em unidades de Ploc ou Ping Pong. Era uma rara habilidade.

No século passado, nossas criptomoedas tinham formato retangular, eram bem duras e se limitavam a três opções de investimento: hortelã, morango e tutti-frutti. O último era o meu preferido, embora até hoje não saiba do que é feito. Salada de frutas? Não faço ideia. Só sei que minhas memórias de infância têm gosto de tutti-frutti.

Nos dias de hoje, a vida ganhou novos sabores. As gomas de mascar, preferencialmente sem açúcar, multiplicaram-se em diversos formatos e essências artificiais, mesclando uva com abacaxi, canela e até melancia. Antes da pandemia, eu tinha o costume de andar com alguns chicletes dentro do carro. Na volta para casa, dava uma paradinha no comércio e levava a eterna promoção da farmácia. Leve cinco, pague três.





Era difícil resistir à oferta. Os cinco pacotes já vinham juntos, amarrados por uma tira de papel, onde se lia PROMOÇÃO, assim, com letras maiúsculas e em negrito. As embalagens ficavam na prateleira de baixo, ao alcance da mão. Na boca do caixa, a moça dava o golpe final: “Não vai levar chicletes? Estão em oferta hoje!”.

Com o confinamento social, saindo menos de casa, alguns hábitos foram sendo deixados para trás. Caíram os chicletes de farmácia. Acabaram as tentações do baleiro na porta da escola das crianças – aliás, o que terá sido feito do Antônio? Desapegamos do cinema, do balde de pipoca e principalmente do guaraná. Faz meses que abolimos o refrigerante.

As mudanças aconteceram naturalmente. O dinheiro encurtou, as saídas ficaram mais raras e as necessidades, recicladas. Mas não quero ser radical. Aceitei o mimo da minha mãe, de coração. Fiquei feliz por ela ter se lembrado de mim e do meu sabor preferido de chicletes, algo que até eu já havia esquecido qual era. Foi uma prova de carinho, quase um colo.





Chegando em casa, distribuí uma unidade para o filho mais velho, que prefere o sabor canela e outra para o caçula, que é adepto do morango. Matamos a saudade de mastigar o tempo, de dividir um pedacinho de inocência, de extrair até a última gota de sabor. Sem precisar se preocupar em passar álcool em gel na embalagem, em não demorar na farmácia ou na inconveniência de mascar chicletes com a máscara.

A vantagem é que aprendemos a dar mais valor aos menores gestos. Lembrei-me do caso de uma conhecida. Ela contou sobre a vez em que foi abordada por um menino na porta da padaria, pedindo esmolas. “Se sobrar uma moedinha você me dá? Estou com fome”, ele pedia. “Depende. O que você vai fazer com esse dinheiro? Dá para comprar dois pães”, ela recomendou. O garoto, de chinelos de dedo e mãos encardidas de sujeira, confessou o plano: “Dona, vou gastar tudo em chicletes”.

Minha amiga gostou da sinceridade. Deu o troco e até um pouco mais. Ficou observando de longe. O garoto torrou o dinheiro em chicletes. Enfiou todos eles na boca, de uma vez. Não conseguia nem falar, mas os olhos bri- lhavam. Naquele dia, ela teve a certeza de ter feito uma criança feliz.

Saiba mais sobre xamanismo no canal Chá Com Leveza.
*Sandra Kiefer assina esta coluna quinzenalmente

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