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Ano novo livre, feito passarinho

Lá de cima, é capaz de enxergar a vida de vários ângulos, ultrapassar fronteiras, planar no infinito. Só observando a imensidão da natureza, de Deus"


26/12/2021 04:00 - atualizado 26/12/2021 07:14

desenho de passaro meditando
Neste ano novo, desejo que todas as pessoas possam um dia se sentir no estado de passarinho.  Eu explico. Estava de saída da garagem de casa, quando despencou o temporal, sem aviso prévio. Resolvi esperar dentro do carro. O pássaro teve a mesma ideia. Pousou no capô e ficou ali escondido, quietinho, esperando a chuva passar.

Nunca tinha visto um passarinho imóvel, parado, praticamente estacionado na garagem. Em geral, eles são arredios ao contato com os humanos. Dão no pé quando alguém se aproxima. Esse não. Ficou ali, descansando de pé, quase imóvel. Parecia uma estátua feita de argila marrom, equilibrado sobre os dois pés, paralelos entre si.
 
Eu e ele permanecemos naquele estado meditativo, só ouvindo o barulho da chuva, vivendo o momento, sem pressa. Cheguei a pensar em responder às mensagens no celular, publicar posts nas redes sociais ou retornar a ligação da aluna. Não tive forças.  Meu olhar foi atraído pela simplicidade do pardal.

Tentei imitá-lo. Naqueles cinco, 10 minutos de tempestade, eu me daria ao direito de não pensar em nada. Ele foi mais competente nisso do que eu. Parecia um sábio. Altivo em sua postura, ele me impressionava com o seu jeito de olhar o vazio, com aqueles olhos negros sem pupila. Profundos.

O pardal não era bonito, nem feio. Talvez simpático, em sua passarinhês despreocupada. Tanto faz. Só estava ali, assim como eu, esperando a chuva passar. Só sendo passarinho. Vivia, apenas. Já eu, menos esperta, escrevia mentalmente essa crônica.

A cena era tão magnética que tive medo de respirar. Permaneci imóvel para não correr o risco de espantá-lo. Lembrei da Clarice Lispector, quando ela cita a ‘levitação dos passarinhos’ no trecho do livro “Água Viva”. Definição perfeita, como era se esperar da maior autora brasileira (ainda que ucraniana naturalizada no Brasil). Ela faria 100 anos este ano, quase 101, visto que o ano já está acabando.

Precisei entender o passarinho. Devagar, com cuidado, sem fazer movimentos bruscos, pesquisei no celular sobre a simbologia espiritual dos pássaros. Estava explicado. O pássaro é um ícone da transcendência. Segundo o que eu li, um ser humano precisa encarnar 10 vezes antes de voltar à Terra no corpo de um pássaro.

Sim, é preciso lutar muito, 10 vezes mais, para ter direito a voar. Levantei o rosto para admirar meu amigo pardal, mas ele já tinha ido embora, em silêncio. É uma pena, queria ter filmado o seu voo. Tirei fotos, comprovando para mim mesma a importância daquele instante. A foto, estática, representou melhor aquele momento.

Deve dar uma certa tranquilidade saber voar. A qualquer sinal de medo ou perigo, você simplesmente bate as asas, dá um impulso e solta o corpo. Sai voando para longe, livre. Foge do confinamento social. Escapa das máscaras e gaiolas.

Deve ser por inveja que passarinho é dito no diminutivo. Até um simples pardal, ou o menor passarinho, já nasce sabendo voar. Ao se jogar para o alto, ele se torna grande. Lá de cima, é capaz de enxergar a vida de vários ângulos, ultrapassar fronteiras, planar no infinito. Só observando a imensidão da natureza, de Deus.

Ele se entrega ao universo, de braços abertos, livremente. Só existindo. É o que desejo a todos em 2022: um estado de passarinho.

Saiba mais sobre xamanismo no canal Chá Com Leveza.

*Sandra Kiefer assina esta coluna quinzenalmente

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