Jornal Estado de Minas

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Caiu a ficha da paz

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Você já teve a sensação exata do momento em que caiu a ficha? Não há expressão melhor do que essa para definir o intervalo de tempo localizado entre o saber e o não saber sobre algo. De repente, aquilo passa a fazer sentido para você. 



Vou dar um exemplo pessoal. Por mais de 10 anos, uma vez por semana bati ponto no consultório do meu analista. Era sempre a mesma rotina.

Eu entrava, cumprimentava o doutor Luiz e me deitava no divã de veludo marrom, na mesma posição. Ele então se sentava na poltrona, de frente para mim. Pegava o seu caderno de espiral e começava a anotar. Daí eu falava, falava, às vezes chorava, tornava a falar, chorava mais. Transbordava problemas.
 
Luiz ouvia tudo, em silêncio. Só me interrompia para assinalar certo trecho da fala, preciso, lacanicamente (existe esse termo?). Esse seria o ponto a ser analisado na sessão. Era incrível o corte que ele fazia na minha fala, quase cirúrgico. Ele mirava no cerne da minha dor. Capturava atos falhos, jogos de palavras, nós e novelos.
 
Por mais de uma década, essa cena se repetiu, com algumas modificações: na quarta ou quinta, 19h ou 20h, primavera ou outono, chuva ou sol. Nesse período, a decoração do consultório mudou pouco. Alguns enfeites revezaram-se nos nichos. Livros foram substituídos por outros, a mesa ficou mais perto da parede, surgiu uma lixeira no canto direito.




 
Eu observava tudo ao meu redor, enquanto tentava destampar as emoções. Via o quadro na parede, os títulos dos livros, a cor das tampas das canetas. Até que um dia caiu a ficha. Eu ouvi uma música tocando no fundo. Reclamei do som, que estava me impedindo de pensar.
 
Luiz se mostrou surpreso. Explicou que era a mesma música de sempre. Ela sempre existiu. Ficava tocando baixinho para preservar a privacidade do cliente, caso tivesse outra pessoa aguardando do lado de fora. Fiquei chocada. Nunca, em todos aqueles anos, eu havia percebido a existência do som ambiente no consultório. Eu juro!
 
Deitada naquele divã, eu ouvia, mas não escutava. Ficava distraída entre tantos pensamentos, mergulhada em problemas, submersa na dor. Havia muito barulho dentro de mim. Precisei silenciar a minha mente para conseguir perceber o mundo ao meu redor.




 
Na verdade, eu nunca estava no tempo presente. Ficava revendo o passado ou antecipando o futuro, acelerada, ansiosa. Pagava para estar ali, mas estava lá. Naquele dia, com a ajuda do doutor Luiz, caiu a ficha da minha pressa interior.
 
Era como se eu estivesse na esquina da rua, embaixo do orelhão da Telemig. Havia acabado de colocar três ou quatro fichas no aparelho. Só quando desse o barulhinho da ficha caindo, poderia fazer a ligação. Era bem diferente de hoje, quando temos o nosso telefone de bolso.
 
Vamos voltar ao meu insight, ao instante em que fui capaz de me abstrair da roda-viva do trabalho, filhos, compras, contas. Eu corria de mim mesma. Na terapia, comecei a perceber a importância de sentir o momento, de estar no agora, no já.
 
Passei a procurar as práticas de meditação, atenção plena, mindfullness. Hoje, sei que essa busca tem outro nome: paz interior. Ou, simplesmente, paz. Na minha última coluna Mais Leve, tratamos exatamente sobre a paz, dias antes de ser declarada a guerra à Ucrânia.
 
Para hastear a bandeira branca no mundo, porém, primeiro temos de colocar a mão no nosso coração e perdoar a nós mesmos. O planeta precisa do nosso estado de espírito, da nossa boa vontade, de sermos mais leves, da nossa paz.