Jornal Estado de Minas

SANDRA KIEFER

Um chamado da natureza

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Desci para o quintal naquela manhã de domingo. Tinha a intenção de terminar de ler um livro, mas recebi um chamado urgente da natureza. Ela pousou ao meu lado, de leve. Tinha a forma de uma borboleta, das mais deslumbrantes que eu já conheci. Meu primeiro reflexo foi tirar uma foto, mas eu não estava com o celular na mão. Estava com o exemplar do livro. 




 
Fiquei feliz comigo mesma. Senti a falta da câmera fotográfica, mas merecia os parabéns por me desapegar do aparelho eletrônico. Dar uma pausa no fim de semana. Dito isso, precisava improvisar. Na falta da máquina, usaria as minhas próprias lentes oculares.
 
Olhei para a borboleta bem atentamente. Registrei cada pincelada de suas asas, seus volteios, sua fluidez. Imprimi a sua imagem na película da memória. Tentei fixar o maior número possível de detalhes para poder depois repostar, ops, reportar o achado a vocês, leitores da coluna. 
 
O desafio era grande. Confesso que eu olhava a borboleta, mas não a enxergava por si só. Deu vontade de chamar meu filho para vê-la também, comprovar a sua presença, como se o inseto só passasse a existir em relação a um referencial alheio a nós duas. Éramos apenas eu e ela, naquele instante infinito. Eu colocaria tudo a perder se eu fizesse um movimento brusco. 




 
Você já viu como as borboletas são ariscas? Reagem a qualquer aproximação humana. Voam para longe, livres. Para evitar isso, era recomendável não respirar profundamente. Presa naquela situação, eu me rendi. Decidi relaxar e me entregar àquele ato de meditação sublime, inesperado. 
 
Devia estar sonhando, mas tive a sensação de que a natureza congelou diante da sua plateia particular, no caso eu. O efeito borboleta deu-se literalmente. Estávamos unidas pela energia uma da outra.  Ela também relaxou. Pousou na margaridinha amarela, e ficou ali parada, sugando o pólen da mesma cor. Bebeu o quanto quis do alimento.
 
Na condição de observadora, fiquei aguardando até que ela terminasse a sua refeição, sem pressa. Conscientemente, eu me propus a sentir o momento presente. Calculei que iria durar pouco, até o meu pensamento levantar voo junto com ela. Acontece que ela não desistiu de mim. Saltitou até a próxima flor e continuou a se alimentar. Fez isso mais duas, três, quatro vezes.




 
Minha nova amiga estava realmente determinada a chamar a minha atenção plena.  Nunca tinha visto isso antes. Em geral, as borboletas fogem ao fazer contato visual com o ser humano. São como pétalas de flores levadas pelo vento, efêmeras. Vão embora antes que a gente possa dizer um ‘oh’ de admiração. O intervalo de tempo é muito pequeno, quase como um flash, uma piscadinha de lado.  
Mas a minha borboleta era diferente, tanto na personalidade quanto na aparência. Fugia ao padrão das outras. As amarelas, por exemplo, vivem correndo. Dão um toque de alegria à rotina, e depois seguem o fluxo, animadamente, sem nem olhar para trás. Já as brancas são mais pacatas. Cumprem seu papel de mensageiras da paz, com graça e leveza. Depois batem em retirada, feito um pedacinho de papel picado, levadas pelo vento.
 
Nada se compara à borboleta do meu jardim. Vou tentar descrevê-la em palavras, mas não posso garantir. Se eu fosse você, parava de ler esta crônica a partir de agora. Por melhor que seja o texto, por mais que eu me esforce, essa borboleta nunca chegará aos pés daquele que você já imaginou até aqui. É como ver filme inspirado em livro.
 
O livro será sempre melhor, com poucas exceções. Por mais premiado que seja o diretor, é missão impossível reproduzir as cenas que cada leitor visualizou antes, na sua tela mental interior. Também os atores serão piores, a interpretação deixará a desejar e o roteiro irá apresentar falhas.   
Vamos lá. Nossa protagonista tinha o formato de uma mariposa, mas não era uma mariposa, disfarçava bem. Podia ser preta, mas dava um reflexo azulado quando batia o sol. As asas eram contornadas da cor laranja. Nas extremidades, havia desenhos de círculos brancos, com o interior pintado de preto, lembrando as pupilas de uma coruja.   
 
Mas não era apenas um par de olhos, como os do “Caso da borboleta Atíria”, do livro de Lúcia Machado de Almeida. Havia vários olhinhos distribuídos pelas asas. E todos eles olhavam para mim. Nesse momento, entendi por que ela atraía tanto o meu olhar.