Eu acredito muito no meu papel como professora. Vejo a grande responsabilidade de compartilhar espaços, saberes e afetos, em tempos em que esses três elementos são tão ameaçadores. E acredito, sobretudo, na revolução que a educação é capaz de fazer.
Trabalho há alguns anos no ensino superior com turmas muito diversas, mas fundamentalmente com a área de humanidades. Vivo uma sala de aula aberta, geralmente afetiva, proponho e recebo muitas reflexões. Tenho turmas formadas por muitas mulheres, que trazem vivências singulares para nossas discussões.
Ser uma mulher feminista atravessa minha docência de formas muito amplas. Os questionamentos sobre situações assediosas e desiguais nos ambientes acadêmicos são mais constantes do que gostaria. Tantas autoridades construídas em cima de nomes masculinos, tantos livros não lidos e nunca comentados, tantas vozes suplantadas por discursos virulentos e virilizados.
Lembro bem de quando comecei a me incomodar com as bibliografias básicas dos cursos que fazia – e também daqueles que eu mesma ministrava: não havia mulheres ali. Nenhuma, ou muito poucas. Nenhuma mulher como teoria de referência, nenhuma mulher elencada como autoridade, nenhuma mulher como leitura obrigatória. Eu olhava para uma sala de aula cheia delas, e não havia um espelho que refletisse esses rostos nos livros que líamos.
Veja só como a estrutura patriarcal opera. Os espaços acadêmicos são espaços de poder, e como tal, precisam reafirmar o tempo todo quem está na ponta da hierarquia do saber. Se já falei aqui que somos socializados numa lógica sexista, esse é um exemplo cabal de tal afirmação. Somos educados num modelo de escola e de pensamento sexista, que invisibiliza toda uma produção intelectual de mulheres. É como se tudo que fosse realmente relevante e digno de ser estudado tivesse sido produzido, majoritariamente, por homens.
E aí vem toda aquela falácia de uma literatura feminina - para ficar num exemplo da minha área de estudos - com a ideia de que existem temas mais próprios da escrita das mulheres e que serviu para amparar essa exclusão compulsória das mulheres do cânone literário e intelectual.
Logo quando tive minhas primeiras turmas de Literatura Brasileira, me vi diante desse desafio: como estruturar um curso dando voz a essas mulheres engolidas, apagadas, diminuídas? Mulheres negras - para citar uma ausência proeminente - que jamais habitaram bibliografias gerais, que nunca foram elencadas como livros fundamentais, que nunca foram estudadas a fundo em teses e dissertações, que nunca estavam indicadas nas listas de vestibulares. E seria esse espaço o suficiente? Quais reflexões deveriam vir atreladas a isso?
Um começo foi a própria reflexão sobre a ideia de cânone e como ele é constituído. Em literatura, e também nas artes, quando falamos de cânone estamos nos referindo a um conjunto de textos e de obras que atravessam tempos e são classificadas como clássicos. Como bem diz Roberto Reis, no seu ótimo ensaio intitulado Cânon, “são um patrimônio da humanidade (e, hoje percebemos com mais clareza, esta “humanidade” é muito fechada e restrita) a ser preservado para as futuras gerações, cujo valor é indisputável”.
Mas se estamos falando aqui de obras escolhidas para integrarem esse grupo tão seleto e especial, quais seriam (ou foram) os critérios para realizar essa seleção? E é aí que a coisa começa a ficar mais complicada e as estruturas começam a dar-se a ver com mais clareza.
O cânone, tal qual como conhecemos, foi constituído com base naquilo que nos sustenta enquanto sociedade: de forma sexista, racista e moralista, além de profundamente eurocêntrica. “Há poucas mulheres, quase nenhum não-branco e muito provavelmente escassos membros dos segmentos menos favorecidos da pirâmide social. Com efeito, a literatura tem sido usada para recalcar os escritos (ou as manifestações culturais não-escritas) dos segmentos culturalmente marginalizados e politicamente reprimidos – mulheres, etnias não-brancas, as ditas minorias sexuais, culturas do chamado Terceiro Mundo”, já nos diria novamente Roberto Reis.
Os “porteiros do cânone” (usando aqui uma expressão da brilhante professora Regina Dalcastagnè) não nos deixariam tão facilmente entrar. E abrir tais portas continua sendo um desafio, uma vez que consolidamos uma ideia de produção intelectual calcada na autoridade masculina. E as saídas que pensamos são, de maneira geral, paliativas. Como, por exemplo, tentar forçar a entrada de obras produzidas por mulheres dentro de uma lógica que nunca as privilegiará.
Colocar autoras negras nas bibliografias dos cursos, ler autoras latinas em clubes de leituras, estudar escritoras indígenas nos espaços acadêmicos são ações importantes, mas que não discutem, por si só, um problema anterior. Discutir a ideia da canonização talvez seja um passo tão importante quanto; entender como nossa formação atende a uma hierarquia social em que os poderes são novamente reafirmados. Entender como e por que essa ou outra obra é autorizada a estar num local de circulação e reverberação, enquanto outras são sumária e compulsoriamente excluídas.
O caso da Clarice Lispector, por exemplo, é muito emblemático. Ela é uma autora que podemos chamar de canônica. Frequenta os bancos das escolas, é muito citada como lembrança literária e por um bom tempo teve sua febre nas redes sociais (seja com seus textos ou com livres, digamos, adaptações creditadas a ela). Clarice tem uma circulação generosa, até, e sua figura é folcloricamente explorada. Mas o seu cantinho assegurado no rol das grandes autoras sempre se deu com uma série de pequenos senões, que podem não soar como tal mas que no fundo – e por vezes nem tão fundo assim – são.
Quantas vezes você já ouviu alguém dizer que a Clarice produzia uma literatura muito feminina? Que era uma ‘literatura de mulherzinha’, com o diminutivo bem pronunciado? Ou que ela tratava de temas da esfera íntima, tão próprios desse tal “universo” feminino? Que ela até escrevia bem, mas era emocional demais? Bom, eu te digo que já escutei esses e mais outros tantos comentários acerca da escrita da autora incontáveis vezes, principalmente nos ambientes acadêmicos. É leitura de passatempo, mas não serve pra ser estudada a fundo e em toda a sua complexidade. Ela cabe no cânone, está autorizada a entrar, mas desde que ocupe um certo espaço. Desde que atenda às expectativas de um certo modo de ler.
Outro caso ainda mais exemplar é o de Carolina Maria de Jesus, autora de livros como “Quarto de despejo” e “Diários de Bitita”. Sempre referida como a escritora “semianalfabeta” (a professora Regina Dalcastagnè tem um estudo fundamental sobre as vozes da margem e sobre a Carolina Maria de Jesus, cuja referência coloco ao final desse texto), ela nunca é realmente autorizada a ocupar esse lugar, seja pela exclusão primeira que se dá pela força da norma linguística, seja pelo racismo pouco disfarçado, seja até mesmo pela dificuldade em se referir à sua produção como literatura, ora apontada como testemunho, ora como diário.
Por mais que estiquemos o espaço para que nele caibam autoras – e também autores – negligenciados, ainda estaremos operando dentro de uma lógica que replica os preconceitos e os privilégios da sociedade, ao invés de buscar formas de dissolvê-la, criando novos parâmetros e novos modos de circular, produzir e, sobretudo, novos modos de ler.
Os dois textos a que me refiro no texto são “Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, de Regina Dalcastagnè, e “Cânon”, de Roberto Reis.