Jornal Estado de Minas

DIVERSIDADE

Sororidade e a construção de uma relação de parceria e apoio entre mulheres


Existem alguns termos fundamentais que compõem o vocabulário de determinados assuntos e, em certos momentos, passam a figurar com mais frequência nas conversas. No caso do feminismo, são palavras tais como empoderamento, equidade, interseccionalidade e sororidade. Esta última, sobre a qual vou me deter nesse texto, figura entre os conceitos de base do pensamento feminista, mas também um dos menos (bem) conhecidos, em suas leituras apressadas e, por vezes, equivocadas. 





A palavra sororidade – que tem uma pronúncia e uma circulação pouco usual na língua portuguesa – tem sua origem no latim “sóror”, que significa “irmã”. Seu correlato bem mais conhecido – ora, veja só - é o termo fraternidade, que nasce do prefixo latino “frater”, e significa “irmão”.

Dessa relação de cumplicidade e parceria entre homens – irmãos, brothers - conhecemos muito. Ela sempre foi constitutiva da nossa sociedade, festejada e incentivada. “Homens são mais confiáveis, sempre se apoiam”, essa não é uma frase incomum de ser ouvida. A construção de uma relação de parceria e apoio entre mulheres percorreu caminhos bem mais tortuosos, de lutas e muitas resistências.

Em uma pesquisa rápida na internet, acharemos algumas definições de sororidade, que podem ser agrupadas numa ideia de uma irmandade possível entre mulheres; uma relação de união, de amizade, de empatia, de respeito e de afeto entre mulheres. É a partir desse sentimento transformado em ação que se formam redes e alianças capazes de mover espaços políticos, culturais, cotidianos, pessoais, econômicos, midiáticos.





Nós bem sabemos como nosso processo de socialização sempre foi marcado pela inferiorização constante dos nossos feitos, pensamentos e existências. Uma das faces mais cruéis da sociedade patriarcal é a criação de mecanismos, por vezes muito bem camuflados na estrutura, que colocam as mulheres a competirem entre si. 

O mito da rivalidade feminina se ancora em modelos muito replicados de comportamento: nas telenovelas, a vilã que tenta roubar o mocinho da mocinha; nos filmes hollywoodianos, a assistente obstinada que tenta atrapalhar a vida de sua colega novata; na criação familiar, a preparação física e emocional para a maior das batalhas, o bom casamento.

Eu poderia continuar desfiando aqui uma série de lugares comuns da cultura pop, do mundo acadêmico, das relações afetivas, da indústria do casamento, mas creio que sabemos cada um deles de cor. Estamos sempre lutando contra nós mesmas por vagas que parecem muito escassas.





O pensamento sexista é o que nos faz julgar, punir e odiar outras mulheres, já nos diria bell hooks (presença assídua dessa coluna). Homens foram educados para se apoiarem, para se protegerem, para se acobertarem, inclusive. As mulheres foram ensinadas a fazerem justamente o caminho oposto.

A nossa educação sempre foi a do conflito com outras meninas, a da disputa violenta pelos melhores empregos, relacionamentos, filhos. Aprendemos desde muito cedo o ódio por nós mesmas, pelos nossos corpos e pelos nossos desejos. 

Quebrar a nossa aliança é um compromisso e um projeto da sociedade patriarcal. “Toda solidariedade política entre mulheres sempre enfraquece o sexismo e prepara o caminho para derrubar o patriarcado” (bell hooks). Por isso a sororidade é tão ameaçadora; ela aponta para um futuro possível e para novas formas de nos relacionarmos, menos violentas e mais afetivas. 





Mas para que isso, de fato, ocorra também temos que entender melhor esse termo e para onde ele aponta, para que não peguemos o caminho fácil de achar que para sacudir essa estrutura basta que gostemos muito umas das outras. Ou pior, que acreditemos numa força interna feminina, numa essência que nos ligaria de forma natural.

O risco de acreditarmos na sororidade como esse sentimento que emana da ideia de feminilidade, é nos descolarmos do sentido político e de resistência que o termo carrega.

Quando a bell hooks nos fala de como o movimento feminista revestiu a sororidade de uma ideia de solidariedade política, ela está nos dizendo que não existem saídas individuais, e sim coletivas. A união entre mulheres só move a realidade a partir da percepção dos sofrimentos de todas elas, atentando-nos aqui aos recortes de raça e classe.

“Enquanto mulheres usarem poder de classe e raça para dominar outras mulheres, a sororidade feminista não poderá existir por completo”, ela nos lembra. 

Uma ideia que aparece frequentemente é a de que a sororidade diz respeito a defender todo e qualquer posicionamento de toda e qualquer mulher, sejam eles quais forem. E, obviamente, isso não faz sentido algum. Eu não preciso concordar automaticamente com as opiniões de todas as mulheres ao meu redor; eu posso discordar de um posicionamento político de outra mulher; eu posso não gostar de um livro que uma autora escreveu.



Não é sobre esse sentimento tão facilmente capitalizável do endosso esvaziado; é sobre criar uma aliança resistente que nos devolva a confiança em nós mesmas, pavimentando caminhos mais seguros para uma caminhada coletiva. É sobre nos fortalecer enquanto grupo, apertar nossos laços para que possamos romper com comportamentos que nos são impostos e pré-determinados. 

Entender a sororidade como instrumento poderoso de transformação passa por abandonarmos posturas que há muito se fizeram parte corrente do nosso cotidiano. A ideia de uma inveja de feminina que não permite que construamos relações tão verdadeiras como pretensamente são as relações masculinas é um mecanismo bem sucedido de controle.

A cada vez que culpabilizamos uma mulher pelo assédio sofrido, que questionamos o maternar de outras mulheres, que eliminamos corpos gordos nos nossos ideários de beleza, que reiteramos os estereótipos hiperssexualizados das mulheres negras, estamos contribuindo para preservar uma estrutura de mundo que nos despreza e nos violenta. 

A sororidade é uma arma poderosa, sem dúvida. Mas ela depende de um senso profundo de coletividade. E esse é um desafio imenso numa realidade em que as conquistas individuais criam uma ilusão de liberdade e onde nos sobrepomos umas às outras, reproduzindo os mecanismos de dominação sob os quais vivemos.

*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universitária nos cursos de Comunicação, Artes e Educação)




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