Esses dias eu estava relendo “Um útero é do tamanho de um punho”, da Angélica Freitas, um dos meus livros favoritos. Tudo ali é maravilhoso; desafia nossa percepção poética, revira nossas angústias, afaga, aperta e dói. O poema de abertura começa assim: “porque uma mulher boa/é uma mulher limpa/e se ela é uma mulher limpa/ela é uma mulher boa”. Como uma pequena explosão de sentidos, esses quatro versos nos dizem de toda uma construção social sobre a mítica da limpeza da mulher, desde a mais cotidiana e tomada como natural, até as suas metáforas mais sofisticadas.
O ideário de beleza das mulheres há muito é composto pela alternância de padrões, que seguem a cartilha do objeto de desejo: alva, pura, sem pelos, sem imperfeições, delicada, limpa. Desde muito cedo os cuidados com o que chamamos, indiscriminadamente, de higiene pessoal é uma tarefa rigorosa para as mulheres; começa pelo sangue menstrual, uma mácula vermelha que precisa ser contida e escondida.
Em seguida vêm os pelos, que devem ser aparados, retirados, camuflados. Ao menor sinal da sua presença, a tal feminilidade parece estar irremediavelmente perdida. O pelo é um marcador masculino e, como tal, uma propriedade privada e intransferível. Não tardam em chegar as demandas pelas correções na pele, as espinhas disfarçadas pela maquiagem, o rosto impecável, festivo.
Descendo um pouco mais nos nossos corpos-receptáculos, é preciso impedir que as celulites se proliferem lançando mão de procedimentos que tapem todos os nossos furos. As estrias na barriga e nos seios também devem ser combatidas – desde cedo, dizem eles – e essa é uma luta difícil. Tem laser, tem creme, tem medo de engordar, de engravidar, de contribuir para que um novo risco avermelhado invada um pedaço de pele.
Se a escolha é por engravidar, a exigência é perseguir a ilusão do corpo de antes. Não engorde muito, para perder o peso bem depressa. Não fique desleixada com sua aparência, porque ninguém gosta de mulher assim. E por falar em desleixo, tem também o cabelo sempre muito bem pintado, os fios brancos que devem ser imediatamente cobertos porque cabelo grisalho é descuido, além de não ser coisa de mulher jovem. Envelhecer é só mais um direito nos foi negado.
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Se a escolha é por engravidar, a exigência é perseguir a ilusão do corpo de antes. Não engorde muito, para perder o peso bem depressa. Não fique desleixada com sua aparência, porque ninguém gosta de mulher assim. E por falar em desleixo, tem também o cabelo sempre muito bem pintado, os fios brancos que devem ser imediatamente cobertos porque cabelo grisalho é descuido, além de não ser coisa de mulher jovem. Envelhecer é só mais um direito nos foi negado.
Existe uma regra muito sólida sobre como uma mulher deve ser e se apresentar social e intimamente. Essa solidez é tão grande que vai tomando a forma de escolhas, nas quais acreditamos porque atribuímos a elas uma ideia de liberdade.
Eu mesma faço afirmações categóricas sobre o tema. Falo que me depilo porque acho mais bonito, mas que não teria problemas em manter meus pelos. Mas raramente os mantenho publicamente, porque eles ainda me atingem na imagem que tenho de mim. Na imagem que as pessoas teriam de mim.
Essa escolha supostamente calcada na minha liberdade de usar o que acho mais bonito nasce de uma beleza ancorada num ideal que pouco nos pertence e que foi constituído numa cultura centrada no masculino e no que é desejável por eles. Numa sociedade em que homens não podem desejar homens, seria impensável que eles desejassem pelos e cabelos curtos, por exemplo.
Essa escolha supostamente calcada na minha liberdade de usar o que acho mais bonito nasce de uma beleza ancorada num ideal que pouco nos pertence e que foi constituído numa cultura centrada no masculino e no que é desejável por eles. Numa sociedade em que homens não podem desejar homens, seria impensável que eles desejassem pelos e cabelos curtos, por exemplo.
É doloroso constatar, cotidianamente, que a minha aceitação de vários aspectos do meu corpo foi condicionada à aceitação de outras pessoas, principalmente dos meus parceiros. Há pouco eu estava lendo um texto da Ana Soares (do blog e perfil “Moda pé no chão”) sobre a tristeza que ela sentiu ao só tomar coragem de usar seus cabelos grisalhos quando foi incentivada pelo companheiro.
Um incentivo que veio atrelado ao elogio que passamos uma vida aprendendo a ansiar: você vai ficar linda e eu vou permanecer. Depilar era uma questão inegociável para mim até encontrar um parceiro que não se importava com a presença dos pelos. Minha escolha foi validada pelo olhar do outro e só então ela se confirmou enquanto possibilidade para mim.
É assim que a máquina violenta das submissões cotidianas opera, condicionando nossos corpos e vontades a uma maneira certa de existir. Afinal de contas, ainda somos colocadas em estado de competição constante, onde o cabelo mais bonito (e mais comprido) larga na frente, a perna mais lisa, o corpo mais esbelto, a unha mais bem cuidada.
Um incentivo que veio atrelado ao elogio que passamos uma vida aprendendo a ansiar: você vai ficar linda e eu vou permanecer. Depilar era uma questão inegociável para mim até encontrar um parceiro que não se importava com a presença dos pelos. Minha escolha foi validada pelo olhar do outro e só então ela se confirmou enquanto possibilidade para mim.
É assim que a máquina violenta das submissões cotidianas opera, condicionando nossos corpos e vontades a uma maneira certa de existir. Afinal de contas, ainda somos colocadas em estado de competição constante, onde o cabelo mais bonito (e mais comprido) larga na frente, a perna mais lisa, o corpo mais esbelto, a unha mais bem cuidada.
E existe um agravante: várias dessas escolhas forçadas nos são apresentadas com o rótulo sedutor do autocuidado. Cuidar de si, hoje, numa sociedade capitalista patriarcal de supremacia branca, é ainda manter-se limpa.
A limpeza vem sempre atrelada a uma ideia de bondade, de aceitação, de obediência. “Porque uma mulher boa é uma mulher limpa”. Não é de se espantar que as ofensas mais contumazes contra ativistas do movimento feminista sejam a de que são peludas, sujas, anti-higiênicas (e por uma conclusão direta, mal-amadas). Essa sociedade não ama as mulheres imperfeitas. Não ama as mulheres inquietas, desejantes e bravas. Não ama mulher nenhuma, sabemos. Mas até o ódio tem seus métodos.
“Uma mulher sóbria/é uma mulher limpa/uma mulher ébria/ é uma mulher suja”, segue o poema de Angélica. A metáfora da limpeza ultrapassa os aspectos estéticos e deságua nos comportamentos esperados de uma mulher. Higienizadas, somos esse conjunto habitacional de reboco igual. Controlável, previsível e de fácil manutenção. Qualquer movimento que nos espalhe para além das margens erguidas já representa um início de ruptura.
Pode parecer pouco – e talvez seja mesmo – mas existem as mudanças cotidianas que importam. Aquelas que ultrapassam o bem-estar individual e impactam a maneira como trafegamos pela vida, mais confortáveis em existirmos dentro de corpos que reflitam o que somos e como desejamos ser. Não acho que isso seja ainda a liberdade de que tanto falamos, mas é certamente um caminho para fazermos escolhas reais, possíveis e transformadoras.
Pode parecer pouco – e talvez seja mesmo – mas existem as mudanças cotidianas que importam. Aquelas que ultrapassam o bem-estar individual e impactam a maneira como trafegamos pela vida, mais confortáveis em existirmos dentro de corpos que reflitam o que somos e como desejamos ser. Não acho que isso seja ainda a liberdade de que tanto falamos, mas é certamente um caminho para fazermos escolhas reais, possíveis e transformadoras.