Não há nada mais transgressor do que o próprio corpo. Para as mulheres, interdito e transgressão lado a lado. O processo de conhecimento, reconhecimento, perda e libertação do próprio corpo diz muito da literatura produzida por elas ao longo da história. Foram muitas as mulheres que ousaram desafiar o espaço virilizado da produção literária em busca de uma voz própria, encarando um caminho que se desenhou na dor, no apagamento e nas mais diversas tentativas de silenciamento.
Nesse caminho de pautar temas ligados ao feminismo, de falar sobre eles, de buscar práticas cotidianas, está a minha busca por ler mulheres, sempre e cada vez mais. Tomei como um compromisso priorizá-las nas minhas leituras íntimas e acadêmicas, inseri-las com frequência nos meus cursos, falar sobre autoras que pouco circulavam, reverberá-las, estudá-las, encontrá-las. E diante do espaço privilegiado dessa coluna, trarei por vezes algumas dessas autoras, num exercício de apresentação e reflexão sobre suas vidas, seus textos, suas obras.
Inicio essa pequena viagem com Hilda Hilst, escritora paulistana que viveu setenta e quatro anos de intensa procura. No auge da sua juventude e beleza, na agitação de uma São Paulo festiva, formada advogada pela prestigiada Faculdade do Largo do São Francisco – feito raro e revolucionário para as moças da época – ela abdicou de tudo para viver em uma fazenda a poucos quilômetros de Campinas, que viria a ser sua mítica residência nomeada A casa do sol. Sua produção é bastante extensa, em todos os gêneros. Escreveu ficção, poesia e teatro, somando-lhes uma qualidade rara.
A descoberta da escrita de Hilda Hilst costuma ser uma experiência desconcertante. É com algum grau de assombro e inevitável sedução que nos vemos dilacerados pela palavra que sangra e que nunca – mas nunca mesmo – nos aponta a redenção. A voracidade do desejo amoroso e a tradução da sexualidade em palavra aparecem com grande relevo na obra de Hilda Hilst e de várias escritoras contemporâneas que se propuseram a enunciar a partir de um lugar próprio, lacunar, pulsante e único.
Hilda sempre se lamentou por não ter muitos leitores. Cansada de ser incompreendida, decidiu que não iria mais escrever literatura séria e sim os livros que as pessoas queriam ler. Foi nesse momento que produziu sua famosa tetralogia obscena (que tem como título mais conhecido “O caderno rosa da Lori Lamby) e pretensamente subverteu toda a lógica da sua escrita para produzir estórias propositadamente chocantes e depravadas. Para seu desespero, as pessoas acharam sua pretensa pornografia dificílima. De nada adiantou seu brado pessoal contra o mercado editorial e os leitores; até quando falseava a si mesma, Hilda era muito elaborada. Os livros têm uma ironia deliciosa.
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A escritora vivia rodeada por mais de 60 cachorros em sua Casa do Sol, onde escrevia religiosamente durante as manhãs. Sempre adorou Física Quântica, vinho do porto (sua bebida diurna), uísque (sua bebida noturna) e telenovelas. Gostava muito de conversar sobre tudo: niilismo, a vida das santas, Wittgenstein, Kierkegaard e discos voadores. Certa feita, inclusive, Paulo Coelho a convidou para escrever o prefácio de um livro sobre vampiros. Isso Hilda não topou; de vampiros ela realmente tinha muito medo.
A mulher por muito tempo ocupou, unicamente, o papel do objeto de desejo nas obras literárias; a figura da musa, da amante, da mãe, da esposa repetindo-se incansavelmente. A escrita provocativa, obscena, desejante, protagonista de si levou tempos para se concretizar no feminino.
Hilda viveu num tempo tão próximo de nós – ela morreu em 2004 – e ainda assim sua obra e vida foram tão revolucionárias para a construção de uma linguagem e de um lirismo que em nada se assemelhava ao cânone literário. Sua personalidade forte e singular valeu-lhe uma áurea mítica, que de certa forma impregnou a recepção dos seus trabalhos.
Uma das histórias mais peculiares sobre Hilda é a do seu envolvimento com os experimentos chamados Fenômenos da Voz Eletrônica, em que pessoas se dedicavam à captura de vozes por meio de aparelhos sonoros, como rádios, e tratavam tais falas como mensagens do Além. Ela acreditava fortemente nessas experimentações; afirmava ter ouvido chamarem “Hilda” em uma das mensagens, assim como a voz de sua mãe dizendo “sim”, em outra.
Ela foi até entrevistada pelo Fantástico, programa dominical da Rede Globo, em março de 1979. Obviamente sua participação gerou mais galhofas do que qualquer outra coisa, intensificando o distanciamento real entre a autora e o grande público. Mas Hilda acreditava fortemente em seus experimentos, tinha rigor científico na elaboração de seus resultados. Seu inconformismo com a ideia da morte manifestou-se das mais diversas formas, e essa foi uma delas, se pararmos para observá-la de forma mais atenta e menos espetacular.
Ao fim e ao cabo, sua conduta extra-obra testava os limites de seu tempo: para muitos era bruxa, para outros tantos, louca. Foi, sempre e antes, escritora, poeta e mulher.
O bisturi e o verso.
Dois instrumentos
Entre as minhas mãos.
Um deles rasga o Tempo
O outro eterniza
Aquele tempo-ouro sem medida.
Rompem-se sílabas e fonemas.
Estanco meus projetos.
E o que se vê
É um só comum-complexo
Coração aberto.
E nunca mais
Na dimensão da Terra
Hei de rever moradas, os tetos
Os paraísos soberbos da paixão.
(Hilda Hilst)
P.S: Boa parte da obra de Hilda Hilst foi relançada recentemente pela Companhia das Letras, em duas edições de formato coletânea chamadas “Da poesia” e “Da prosa”. Vale a pena a leitura carinhosa e atenta.
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universitária nos cursos de Comunicação, Artes e Educação)