Jornal Estado de Minas

MATERNIDADE

'Coração de mãe, se tivesse Sol no céu, seria de leão, com certeza'


 
*Texto escrito por Ursula Rösele, convidada especial da coluna desta semana para falar sobre maternidade 
 
Eu era pequena, uns nove, dez anos. Ganhei um kit de detetive, que continha uma lupa azul clara, um pozinho, uma folha para impressões digitais serem registradas e poderem ser descobertas pelo tal pó mágico. Peguei uma bolsa de plástico grosso, com quadriculados nas cores verde e branca.




 
Cheguei à escola empoderada, em busca de MH, minha melhor amiga na infância. Juntas descortinamos universos e dividimos o mesmo par de patins. Descíamos, cada uma com um pé, de mãos dadas, as rampas que conectavam a casa de sua avó à sua. Passávamos pela parreira, que tanto abrigou nossos sonhos infantes, e lá ansiávamos a menarca, planejávamos festas com músicas dos anos 1960 e trocávamos papéis de carta.
 
A tal bolsa se tornou nosso segredo. Com ela andávamos por todos os enormes pátios daquela escola. Como se guardássemos uma identidade secreta, esculpimos os mistérios que envolveram aquelas longínquas manhãs, naquela que talvez tenha sido a década mais cringe de todas: 1980.
 
Um dia fomos chamadas à sala da Supervisora, que nos aguardava com um sorriso solene, alto, empostada numa possível roupa com ombreiras e cabelos cuidadosamente penteados para trás. Fomos inquiridas, não apenas aquela vez, das razões pela nossa insistência em ficarmos somente as duas, sem socializar com nossas colegas. Não sei dizer se aquela foi a primeira vez, mas certamente não foi a única. Inúmeras vezes questionaram nossa amizade, nosso refúgio, os motivos pelos quais não partilhávamos nossas fantasias com mais ninguém.




 
De detetives a investigadas, como num virar de páginas típico de um desencanto que nossa tenra idade ainda não abarcava. Somos amigas até hoje. Morei um tempo na Alemanha, e nem mesmo o Oceano Atlântico conseguiu nos separar. A vida adulta chegou e com ela uma série de desilusões. Não me tornei agente do FBI, pianista, nem jogadora de vôlei.

Mas creio poder dizer que os devaneios que dividimos outrora, ainda encontram pouso em meu coração. Hoje sou um tanto de muita coisa, oscilando para lá e para cá. Professora de cinema, escritora, às voltas com o fazer cinematográfico. Ironias do destino, fui me especializar em documentário, talvez em busca de uma forma alternativa de elaborar minhas utopias.

Esta semana começou o segundo semestre na escola de meu filho. Construtivista, conceituada, considerada uma das melhores da cidade. Meio naquele esquema de santo que não bate, desde o início, há cerca de quatro anos, vivo alguns entreveros ali. 




 
Meu filho hoje tem seis anos. ''Tem só ele?''. ''Sim, e ele é um universo inteiro''. O pequeno foi diagnosticado, há cerca de três anos, com uma condição chamada Transtorno do Processamento Sensorial (TPS). É um quadro no qual, cérebro e sistema nervoso possuem certas dificuldades em organizar estímulos. Algo como uma hipersensibilidade sensorial. Há quem julgue ser parte integrante do espectro autista, mas nem todos pacientes diagnosticados com o TPS fazem parte do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).

 Foi um diagnóstico suado, pois apesar de eu ter notado as circunstâncias de sofrimento dele, no meu entorno todos diziam ser timidez, nada demais, que melhoraria com o tempo. Fato é que usar o liquidificador, o aspirador, furadeiras ou similares era um sufoco. Levá-lo em aniversários se tornava motivo de angústia, pois ele temia justamente o tão esperado ‘parabéns’, por conta dos ruídos das palmas e cantorias. Além disso, ele vomita com facilidade, tanto quando coloca uma grande quantidade de comida na boca, quanto estranha a textura de algum alimento. 
 
 
 
Desde a sua adaptação na escola, vivemos uma série de reuniões nas quais a narrativa de suas experiências por lá me levavam às lágrimas, à culpa, ao desejo de retorná-lo ao meu ventre. Dança da festa junina? Um pavor. Brincadeiras ruidosas? Idem. Na primeira devolutiva da escola, em uma reunião com direção e professora à época, depois de ouvirmos uma série de narrativas que pareciam relatar o estorvo que era tê-lo em sala, a diretora, em pleno 8 de março, Dia Internacional da Mulher, chegou à conclusão de que as dificuldades do pequeno se deviam ao fato de sua “simbiose comigo ser demais”. Ele tinha apenas um ano e oito meses e ainda amamentava. O pai saiu ileso daquela reunião.





Após chorar copiosamente por dez dias, pedi uma conversa privada com ela, que admitiu ter sido um fiasco e pediu desculpas. No entanto, o peso daquelas palavras me levou a desmamar meu filho, por medo de atrapalhá-lo a viver o mundo e sua jornada do lado de fora.
 
Nesta semana soubemos que ele havia sido separado de sua melhor amiga. Agora, em tempos de pandemia, não dá para todos ficarem na mesma turma, logo, foram separados em bolhas. Um ano e cinco meses de pandemia depois. Depois de terem passado mais de um ano trancafiados em casa, a escola chegou à conclusão de que os dois, ''encapsulados'' demais, após terem passado pouco mais de dois meses juntos novamente, precisavam ser separados para estimularem a convivência com outros colegas.
 
Meu intuito não é crucificar a escola, que, bem-intencionada (quero crer), agiu num afã pedagógico de ensiná-lo outras formas de socialização. À parte os absurdos ouvidos na recente reunião, que incluiu o fato dele sempre separar um lugar para a amiga nas brincadeiras, um não desgrudar do outro, e a amiga ter saído feliz abraçada a outra colega no primeiro dia sem ele, quero mesmo é lembrar de Amor, Afeto, Empatia. Assim, com letra maiúscula.





Agosto de 2021. Estando esse texto no presente, creio que tal data dispensa maiores contextualizações. Hoje, no dia em que o escrevo, 1099 pessoas faleceram vítimas da COVID-19. 
 
Acordei, preparei o café, tomamos. Conversei com ele acerca do que se coloca de agora em diante, o encorajei a aproveitar a oportunidade de vivenciar novas experiências com seus outros colegas, arrumei seu lanche e coloquei um biscoito amanteigado em forma de coração – “para que você saiba que o coração da mamãe está sempre com você”. Ele foi. Calado no carro, olhando para o lado de fora do vidro.
 
Hoje, 1099 pessoas faleceram vítimas da COVID-19. Me recordo das primeiras imagens que circularam em minha rede social (não dou conta de mais de uma). Cantos de apartamentos, frestas de janelas, plantas, resquícios do sol lá fora. Da clausura, ao convite privilegiado da yoga online, da produção caseira de pães e da meditação.  
 
 
 
Lembro-me de vislumbrar sairmos melhores desse que tem sido o período mais insano que já sonhei(amos) viver. O amor ao cinema, apesar de bater forte pelo documentário, também me convoca a devaneios ficcionais. As portas reabrindo, o retorno dos abraços, podermos ressignificar tudo aquilo que deixávamos para trás, no intuito de evitar lamúrias em nossos epitáfios.

Coração de mãe, se tivesse Sol no céu, seria de leão, com certeza. O instinto que senti ao ouvir as razões pela ruptura espacial a que meu filho e sua amiga foram impostos, talvez seja impublicável. Que sirva de crescimento, que possa fornecer outras formas de ajudá-lo a enfrentar as cores cinzas que também o aguardam.




 
Fico aqui com meus alfarrábios, pensando nesse mundo que criamos. Fomos de não soltar as mãos de ninguém a sequer poder tocá-las. E nem mesmo nesse protocolar retorno a um vislumbre do que já fomos, conseguimos vislumbrar a grandeza de um afeto que se constrói na infância

Hoje a mãe de outro coleguinha dele me acolheu e contou que seu filho disse a ela estar triste pelo meu. Mas que ele e outras duas coleguinhas ficariam perto dele, para que se sentisse melhor. Chorei alto. E lá no fundo, empurrando para o lado o ego que estava me consumindo, agradeci por ainda haver no mundo sementes de um amanhã melhor.
 
 
 
Tenho sentido medo de a pandemia não acabar, sabem? Principalmente quando vejo na secura de alguns olhos, que o que se apresenta no horizonte, é que a pandemia, meus amigos... somos nós.

audima