Jornal Estado de Minas

RESISTÊNCIA

Escolher o feminismo é escolher amar


 
“Se mulheres e homens querem conhecer o amor, precisamos aspirar ao feminismo”. Essa é a frase de abertura do capítulo “Amar novamente: o coração do feminismo”, da bell hooks e me marcou muito desde a primeira vez que li. Não é raro que nossas primeiras associações ao feminismo, enquanto movimento e ideia, sejam por algum tipo de desilusão, dentre elas a amorosa. 





A decepção recorrente com relacionamentos que se revelaram opressores, tristes e violentos de diversas formas, levou parte de nós, mulheres, a uma insurgência temporária contra uma certa ideia de amor. Nossa aprendizagem sobre esse sentimento sempre se pautou pelo ideal do amor romântico, que reproduz em larga escala os valores patriarcais, para homens e mulheres. 
 
 
 
A amargura e a raiva, sentimentos tão associados ao feminismo ainda hoje, apareciam nos resquícios de uniões cruéis, que em nada se pareciam com os lugares livres e felizes que nos prometiam, naquele imaginário de romance e paixão dentro do qual fomos lançadas desde muito cedo. E não era algo gratuito, um defeito de mulheres insatisfeitas e pouco femininas; era algo real, doloroso e propulsor de várias lutas.
 
O sentimento de dominação aparecia fortemente dentro de casa, no reforço dos papeis de gênero esperados, cabendo a toda e qualquer mulher a esfera do cuidado em detrimento de um lugar de sustento e chefia, irrevogavelmente destinado ao macho. O desequilíbrio desses papeis achava seu equivalente direto no relacionamento romântico: tem sempre alguém que dá amor e sempre alguém que recebe. Quem é quem, acho que já conseguimos supor. 





Mas é preciso complexificar essa crítica, como nos alerta hooks: “em vez de especificamente desafiar os equivocados pressupostos patriarcais de amor, ela apenas apresentou o amor como um problema”. E assim corremos o risco de realizar uma troca pouco efetiva e limitada em seu alcance. Amar é uma ação importante dentro da estrutura de poder e reverter o que reconhecemos como tal é uma forma de transformação social. 

Sempre quando me reúno com amigas, trocamos insatisfações variadas sobre nossos parceiros e parceiras. Vão desde aquelas muito leves, rotineiras, até as mais densas, que fazem com que pensemos em desistir. Mas, em geral, todas elas versam sobre uma determinada maneira de viver as relações, mesma aquelas bem felizes. As hierarquias de poder estão ali, fazendo concessões, mas estão.
 
 
 
E a gente conhece bem pouco das alternativas possíveis, porque todas elas impõem uma maneira nova de pensar a realidade. Nossos privilégios de alguma forma nos lançam num lugar confortável de fazer pequenos ajustes para alcançar esse lugar, individual, de satisfação. 





Mas se não atravessarmos o conforto de exaltar o amor sem poréns ou o de negá-lo sem alternativas, não chegaremos a um modelo mais justo pra todo mundo. Amar novamente, permitindo-se uma um novo ato que não seja a repetição de uma chaga dolorosa e opressora, é uma prática que movimenta a estrutura, que mostra que sentir é também agir, pensar e lutar. 

Escolher o feminismo é escolher amar, cito de cabeça bell hooks. Se abrirmos mão disso, talvez nunca mais recuperemos um caminho que nos devolva a beleza de sermos seres sensíveis. Mas não nos enganemos em achar que o amor é estático e espera indissolúvel, imutável, ao longo dos tempos.
 
O amor é tempestade que move, é renovação, resistência e luta diária. Ele nos atravessa e nos transforma, como um grito que dissolve cada instante nesse mundo que seja de submissão e dor. Talvez ele seja o componente de liberdade que nos falte, ainda que acreditemos ingenuamente que ele está em todo lugar. 
 
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universitária nos cursos de Comunicação, Artes e Educação)

 

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