Sex Education é uma série britânica deliciosa, dessas que tratam adolescentes como seres com vida e desejos próprios, e muito relevante nas abordagens sobre temas ligados à sexualidade e gênero, construção das identidades e preconceitos de toda ordem.
Nessa semana estreou sua terceira temporada (a série pode ser vista na Netflix), depois de um longo intervalo em razão da pandemia. Eu aproveitei a calorenta noite de sábado para maratonar o programa, como boa fã que sou. E dentre tantos assuntos importantes e bem tratados pelo roteiro, um deles me tocou, especialmente.
Talvez por conversar diretamente comigo e com as elaborações que me atravessam; talvez por ser algo que sempre volta nas reflexões para e a partir do feminismo, a questão da maternidade e da gestação é sempre um lugar de interesse, para mim.
Na nova temporada do programa, vemos a dr. Jean Milburn (interpretada por Gillian Anderson, que nesse meio tempo também fez Margaret Thatcher, em “The Crown”) já com uma gravidez adiantada, a barriga bem visível em cena.
A personagem é terapeuta sexual e mãe de Otis, o adolescente protagonista, com quem sempre está numa relação conflituosa de proteção e liberdade. Ela aparece às voltas com a dificuldade de achar o melhor momento para contar a novidade ao antigo namorado, com quem teve altos e baixos na temporada anterior.
Nada nesse meu resumo do enredo pode parecer muito diferente do que já vimos tantas vezes, a não ser o fato de que Jean Milburn é uma mulher de 48 anos. E, para além das agruras de tentar restabelecer esse laço com o pai da criança e (re)configurar uma nova família, destaca-se a menção às recorrentes interferências violentas que sofrem as mulheres que engravidam após os quarenta anos.
Na vida, assim como na série, há sempre um médico disposto a te contar todos os riscos terríveis de uma gravidez “tardia”. Há sempre um conhecido te mostrando alguns números imaginários, numa estatística muito particular de síndromes raras e partos perigosos.
Há sempre um familiar tentando te mostrar como não se tem muita energia depois de certa idade, então não é bom demorar, hein? O corpo perecível da mulher é assunto público e corriqueiro. As pessoas sequer se constrangem ao tecer comentários desse tipo; é tratado como natural o domínio sobre nossos desejos e escolhas. Esse poder se reveste de uma camada muito violenta: o medo.
A capacidade de provocar medo. Porque é óbvio que é aterrorizante ouvir tudo isso quando se está gestando ou tentando gestar uma criança. Por mais que você se cerque de pessoas afetuosas, de informação correta, de conhecimento do próprio corpo, de certezas, existe uma brecha por onde passa um resquício de voz dizendo que você não pode, que você não consegue.
Para quem quer ser mãe, a vida-pós-trinta-e-cinco-anos passa a ser uma corrida. Esse número tão particular decreta não só a sua capacidade de gerar a partir dali, mas todas as suas possíveis competências nesse papel. As possibilidades de escolha caem vertiginosamente; a cada ano que passa te tiram um desejo. Primeiro, a liberdade de imaginar o próprio parto. Depois, toda a serenidade de viver o tempo no ritmo que ele tem.
Lógico que, hoje, conseguimos nos blindar mais disso tudo, buscando nossas comunidades de pessoas que já viveram e vivem experiências diversas. As redes sociais ajudaram bastante, visibilizando relatos de mulheres que tiveram partos e gestações saudáveis, felizes e autônomas em idades próximas ou superiores aos quarenta anos.
E isso é mesmo um alento, um afago, uma força. Assim como são a boa informação, o atendimento gentil e correto, e o tratamento justo e livre. Mas sabemos bem que essa justiça não alcança a todas, tampouco o acesso a informações básicas e fundamentais.
Fazer circular as pautas e discussões sobre maternidade e gestação é algo imprescindível na construção das nossas liberdades, das nossas vidas. Ajudar a desfazer mitos insensatos; dar suporte às mães, gestantes e puérperas; compartilhar informações relevantes e combater as opressões cotidianas do corpo e das vontades é um compromisso que deve ser assumido por todas nós, incansavelmente.
Decidir engravidar mais tarde é escolha possível e natural, que vem de mudanças de percepção, de avanços nos conhecimentos médicos e científicos sobre a reprodução e de algumas tantas conquistas que movimentos feministas buscaram e alcançaram, como a inserção mais equânime no mercado de trabalho e o deslocamento da lógica de relacionamento para a procriação imediata e veloz.
E essa escolha também diz respeito a um olhar renovado sobre nossos corpos e sobre o envelhecimento. Como se já não fosse suficiente toda uma estrutura afável à existência masculina, decidiu-se que também o tempo seria seu aliado exclusivo.
Deve ser muito confortável, de fato, ter valorizadas todas as marcas que são desprezadas quando na mulher: os cabelos brancos, a barba grisalha, a larga experiência sexual, até os filhos de relacionamentos prévios.
Mas ainda que gradativamente, vemos uma mudança nessa configuração. Mulheres que exibem orgulhosamente a passagem do tempo em seus corpos, seja na dimensão mais externa, como a dos cabelos brancos, seja no controle das suas decisões de se relacionarem e engravidarem (ou não) quando puderem ou quiserem.
Mas o acolhimento de si mesma passa por muitas etapas que envolvem, por exemplo, a segurança para ser, sentir, dizer e se reconhecer. É um caminho longo e raramente fácil. O sistema não nos quer juntas, tampouco fortes. Nos quer silenciadas, biologicamente datadas, obedientes.
Não há como aceitarmos isso mais, não cabe. Extrapolamos esse lugar, dia após dia, e esse é um movimento que não vai parar. Ele estremece, toma fôlego, bebe uma aguinha, mas não vai parar. Por isso mesmo, é preciso lembrar a cada instante da sororidade como arma poderosa e do senso de ajuda mútua, solidária e afetiva que deve guiar nossas relações. Ou ainda, de saber quem vem com a gente, abrindo e dividindo os caminhos.
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universitária nos cursos de Comunicação, Artes e Educação)