Jornal Estado de Minas

FESTA DOS SENTIDOS

Clarice Lispector e algumas considerações sobre o ato de sentir


 
O impacto de um livro, um filme, uma canção sobre nós é imprevisível e a experiência subjetiva que acontece ali não se repete, tampouco se pode prever com exatidão; há uma singularidade irrepetível no processo de fruição estética. Há uma forma de prazer específica que se impõe nesses momentos, o prazer dos afetos, do deixar-se afetar pelo movimento da obra, pelas sensações provocadas pelo ritmo, pelo tom, pela voz, pela cor, pela palavra. 




 
Esse embate da obra com suas leitoras e seus leitores, tomando aqui emprestado o vocabulário de Roland Barthes, gera uma reação que se espalha dentre tantos sentimentos possíveis: inquietação, euforia, tristeza, encantamento, apaziguamento, aflição. Ou talvez entre tantas sensibilidades possíveis; tudo numa obra artística e literária aponta para um lugar de movimento, de não fixidez. A ideia da tirania do sentido não se faz possível na fruição estética. 
 


É muito comum que eu abra minhas aulas sobre experiência estética literária puxando alguns desses pensamentos. E eu sempre parto do conto “Amor”, da Clarice Lispector, para percorrer esses espaços, para tocar nesse lugar da palavra que provoca uma sensação, do prazer horrorizado diante do mundo. A obra de Clarice é uma festa dos sentidos e é sobre sentir que me interessa falar hoje. 
 
Nos seus textos, Lispector trabalha nesse espaço entre o corriqueiro e o extraordinário, ou em como essas duas esferas se atravessam o tempo inteiro. Suas recorrentes metáforas - como o cego mascando chicletes em “Amor”, que será o disparador da desconcertante revelação de Ana, a protagonista – estabelecem o vínculo necessário para a relação dialógica que estabelecemos com o texto. Nosso olhar pragmático para o mundo é colocado em suspenso, uma vez que estamos endereçando todas as emoções e sensações levantadas por aquela leitura. 





O texto clariceano é de uma força notável, dessas que sustentam um edifício inteiro - para usar parte da famosa frase da autora que circula por aí nos exercícios motivacionais das redes sociais. Clarice é uma escritora que sente, que pulsa, que assume a vida como um mistério e dele faz um guia. 

É bastante comum que ao lermos a autora também experimentemos a sensação epifânica, uma revelação existencial nascida da banalidade. Somos invadidas pelo mundo, passamos a viver repletas dessa sensação do mundo, como se pudéssemos tocar o instante onde tudo nasce. 
 


 
É assim em “Amor”, conto no qual Ana, uma mulher comum, dona de casa, esposa, mãe dedicada e conformada ao seu papel social, sai para fazer feira, pega o bonde e tem uma revelação que se inicia com a imagem banal de um cego mascando chicletes, se prolonga pelo passeio aterrorizante num Jardim Botânico completamente ressignificado pelo seu olhar deslocado da rotina e termina com seu retorno ao lar que parecia já não lhe caber, esmagado pelo alargamento da sua própria capacidade de sentir. É assim também em “Felicidade Clandestina”, texto ainda mais conhecido da autora, em que uma menina sai repetidamente em busca de do livro “Reinações de Narizinho” que uma amiga de escola tinha e prometera emprestar e, maldosamente, sempre adiava a entrega vendo a ansiedade da garota em ter o exemplar em mãos. O encontro da menina com o livro, ao final do conto, é de um êxtase compartilhado. São textos que funcionam ora como espelho ora como lente que amplia o mundo, que abre caminhos e que destampa os olhares. 

Um susto. Ler Clarice é um susto. 
 
*Silvia Michelle A. Bastos Barbosa (professora universitária nos cursos de Comunicação, Artes e Educação) 




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