Na última semana estive relendo um livro de poemas que adoro, particularmente, chamado “Os corpos e os dias”, da Laura Erber. A autora, que é também ensaísta, artista visual e professora, exerce um grande fascínio sobre mim. Laura é uma das vozes que mais me impressionaram nos últimos tempos, talvez pelo seu lirismo contido, calculado, burilado no detalhe ou talvez pelo seu estonteante trabalho com as referências, que são por si só uma obra à parte.
No livro em questão, essa interlocução com outras vozes aparece de maneira tão envolvente, que a leitura se confunde com um jogo de detetives em que buscamos pelas delicadas pistas espalhadas nas páginas. Eu mesma me dediquei a essa tarefa com afinco, encontrando (para meu deleite) algumas das escritoras que constituem meu cânone íntimo e afetivo.
Uma das vozes que se misturam à de Laura no livro é a de Alejandra Pizarnik, poeta argentina, a quem a brasileira já havia dedicado uma de suas mais bonitas videoinstalações, “História Antiga” (2005). Alejandra foi uma escritora profundamente ligada ao domínio e exercício da linguagem.
Dona de uma obra incisiva, ateve-se a uma gama limitada e quase circular de temas: morte, medo, noite, silêncio, amor. A potência do seu trabalho está na maneira como conseguiu reelaborar esse núcleo-duro numa infinidade de novas possibilidades, impondo um movimento incessante de reescrita e recriação.
Dona de uma obra incisiva, ateve-se a uma gama limitada e quase circular de temas: morte, medo, noite, silêncio, amor. A potência do seu trabalho está na maneira como conseguiu reelaborar esse núcleo-duro numa infinidade de novas possibilidades, impondo um movimento incessante de reescrita e recriação.
Adília Lopes, poeta contemporânea portuguesa, é a outra voz que se destaca e faz a interlocução inaugural com os poemas de “Os corpos e os dias”. Aliás, Adília Lopes é o nome inventado por Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, portuguesa nascida em Lisboa, estudante de física, desiludida pela gravidade, para dar vida à sua persona poeta.
Adília vem ao mundo em 1983, segundo sua criadora, e assume a faceta da sobrevivente: o corpo modificado pelos remédios, a procura jocosa e dolorosa por um namorado, a solidão naturalizada nos exercícios poéticos de aceitação.
Há uma construção textual que me parece muito similar nas duas autoras. Um poema que não parece poema, que quebra com um certo acordo lírico e desnuda sua própria estratégia no rompimento do pacto com quem lê. Não é confortável, embora pareça muito acessível.
A poesia de Adília não se entrega nunca numa primeira leitura. Há que se voltar muitas vezes para encampar a real dimensão dos seus recursos profundamente sofisticados de entrelaçamento entre ficção e dados biográficos. Não é uma poeta de silêncios, mas de vozes transversais e emuladas que, de tão presentes, tão gritantes, quase nos impedem de ouvir.
Em Laura Erber, essa sensação incômoda de nunca alcançar o movimento do próprio livro é evidenciada por uma sequência de poemas que nunca se realizam. A catarse do sentido é recusada a cada virada de página. O incômodo se dá pelo que repetidamente nos move do confortável lugar de entendimento. Frases curtas, alternadas com vazios, entrecortadas por registros narrativos; pequenos roteiros de um instante.
e de repentepor uma limitação severaé novamente possível dizer algo bem simpleso castelo é amarelohá um jardim há um lago
(ERBER, 2008, p. 15)
(ERBER, 2008, p. 15)
Na terceira interlocução mais sutil, os flashes narrativos quase fílmicos evocam, numa piscadela, a poesia marginal de Ana Cristina César, parecendo nos oferecer o afago de um reconhecimento que se desfaz na página seguinte. Não há um milímetro de conforto aqui.
A leitura dos livros (e que se estende a todos os seus trabalhos artísticos, de alguma forma) de Laura Erber, em especial “Os corpos e os dias”, está envolta na descoberta de uma camada mais profunda, de um jogo desnudado aos poucos. Em cada ponto de contato com sua obra, me vejo na tentativa de encontrar uma palavra que me decifre a palavra.
E tantas vezes volto ao silêncio de cada intervalo de fôlego, perseguindo vozes, vultos e formas. Volto ao futuro presentificado; o eterno retorno que se realizaria no particípio feminino. “Uma mulher-kaputt” (o alemão é a parte mais fácil aqui), que recolhe o próprio estrago por não saber o que fazer com ele.
E tantas vezes volto ao silêncio de cada intervalo de fôlego, perseguindo vozes, vultos e formas. Volto ao futuro presentificado; o eterno retorno que se realizaria no particípio feminino. “Uma mulher-kaputt” (o alemão é a parte mais fácil aqui), que recolhe o próprio estrago por não saber o que fazer com ele.
É possível reconhecer, por meio da poesia, que aquilo que desencadeia a linguagem sempre nos escapa. Escrever é como “ancorar um navio no espaço” (Ana Cristina Cesar, me emprestando sua voz). A sensação que oscila entre o silêncio e a polifonia nos poemas de Laura é o que torna sua construção mais potente, na medida em que nos aponta um tipo de insuficiência que nenhum dos corpos, e muito menos dos dias, dará conta.