Escrevo esse texto ainda sob forte emoção com a morte da Marília Mendonça. Naquela sexta entrei no carro para dar aula com uma ponta de esperança e desci do carro com a notícia dilacerante. Senti uma tristeza tão profunda, que me imobilizou por algum tempo.
A aula que eu daria dali a alguns minutos era sobre a indústria cultural, veja só. Esse lugar teórico por vezes tão embaçado, - onde tantos pesquisadores-professores- intelectuais entram sem nuances, sem a delicadeza que o olhar crítico nos exige – um lugar que pode servir de terreno para toda uma sorte de discursos elitistas, preconceituosos e vaidosos. A clássica máxima atualizada anualmente de que devemos ler um livro ao invés de assistir ao BBB, é sustentada por aqueles que seguirão tentando chancelar o que é arte, o que é cultura, o que emociona, o que merece ou não ser visto, lido, ouvido.
Não seria diferente agora. Essa arrogância de uma autointitulada intelectualidade diante da morte de uma artista popular é uma das coisas mais horrorosas que existem.
Me causa sempre muita irritação ler e ouvir frases como “apesar de sertanejo não ser meu estilo de música, fiquei...” ou “eu nunca tinha ouvido, mas...” ou ainda “eu não gostava, entretanto...”. Não existe nenhuma justificativa racional e sensível que faça você ter que provar a sua superioridade intelectual e estética antes de lamentar a morte de alguém. Existe apenas a constatação óbvia de uma limitação em sentir e viver num mundo que pulsa de maneiras tão diversas, e tão bonitas.
Marília Mendonça era uma artista brilhante. Uma mulher que tomou para si um lugar sempre tão virilizado, impregnado por um discurso machista tomado como muito
natural. Ao recuperar um lugar ao qual não tínhamos acesso, ela abriu para todas nós um caminho: o de protagonizarmos nossas dores e decidirmos o que fazer com elas.
Eu mal tenho palavras para dizer o quanto isso é maravilhoso. Uma mulher que nos mostrou que nós não merecemos menos do que somos e que somos muito mais do que sempre nos fizeram acreditar. Isso é coisa demais.
É revolucionário, porque move.
É uma ação na vida, é ultrapassar o lugar do discurso e empurrar um tijolo da estrutura.
E ela fez isso dentro de um nicho de mercado dominado com folga por duplas sertanejas masculinas, que sempre puderam cantar livremente suas peripécias amorosas, sexuais, seus modos vitoriosos de viver os relacionamentos, seus poderios românticos, financeiros, profissionais. Marília chegou reivindicando tudo isso, mas
infinitamente mais.
Ela trouxe voz, uma existência real que sofre, que ama e que faz escolhas. Ela iluminou tudo ao cantar esse lugar do possível, do que está ao nosso alcance, de alguma forma.
O feminismo não se faz só de leituras acadêmicas, de falas referenciais. Por mais que saibamos, parece que tantas vezes nos esquecemos disso. O feminismo se faz, também, na potência transformadora de artistas como Marília, que ao cantarem e escreverem sobre aquilo que é cotidiano, o que nos é próximo, compartilham novas maneiras de ser e sentir, com independência, alegria e coragem.