“Em primeiro lugar as montanhas “, já dizia Fernand Braudel ao retratar o Mediterrâneo e enfatizar a liberdade das montanhas submetidas à menor intromissão externa uma vez que a vida das cidades nas baixadas, no momento histórico retratado, não penetrava facilmente na vida dos que viviam nos topos.
Leia Mais
A hipocrisia e a geopolítica: um breve olhar sobre os Uigures na ChinaCOVID-19: por que crianças precisam da vacinaA Escócia e os novos ventos de liberdadeNascida de um conflito, a Irlanda do Norte revive as sombras do passadoO coronavírus e a globalização econômicaEssas protuberâncias da superfície terrestre ocupam uma parcela territorial pouco expressiva do globo quando comparadas às largas extensões dominadas pelos planaltos e planícies, que geralmente as circundam. Entretanto, tais terrenos elevados desempenham um constante papel de interesses para o Estado. Interesses esses os mais diversos - turísticos, geoestratégicos, econômicos etc., devido às suas caraterísticas geológicas e geográficas.
De forma simplificada, as montanhas são, essencialmente, uma resposta ao movimento das placas tectônicas quando se sobrepõem, erguendo-se, imponentes por faixas, mais ou menos longas, de cadeias montanhosas.
Se nos mapas aparecem em desenhos facilmente identificados, quando observadas no terreno, as sutilezas se desvanecem. As montanhas abrigam os mais desconcertantes cenários. O que antes parecia apenas rugosidades da Terra perdem essa obviedade ao serem analisadas mais detalhadamente, sobretudo quando envolvem os interesses de Estados diversos.
As montanhas abrigam múltiplos cenários e, por isso, o fascínio que exercem. São símbolos do Divino ao se destacarem nas principais religiões como áreas de manifestação de Deus: Moisés, no Judaísmo, recebeu as Tábuas da Lei no Monte Sinai; no Cristianismo, vários episódios da vida de Jesus Cristo ocorreram nas montanhas; no Islã, o Profeta Maomé teve suas primeiras revelações em uma caverna nas montanhas.
As montanhas foram áreas de refúgios para rebeldes e heréticos, principalmente no mundo medieval, mas ainda servem de abrigos para grupos terroristas da Chechênia e nas montanhas ao norte do Afeganistão, por exemplo. Elas são fronteiras, ditas “naturais”, entre diversos países: os Andes separam Chile e Argentina, a região caucasiana separa a Rússia da Geórgia e do Azerbaijão.
Os ambientes montanhosos abrigam reservas minerais fartas e cobiçadas além de concentrarem as cabeceiras dos principais rios das bacias hidrográficas do mundo, como nos himalaias tibetanos e na região da Anatólia, na Turquia, que produzem energia, irrigam campos, geram tensões e muitas divisas oriundas do turismo.
As montanhas, porém, têm suas limitações: são difíceis de cultivar, sujeitas a ravinamentos e deslizamentos frequentes, avalanches e inundações torrenciais nos altiplanos. Mas, como já foi dito, uma montanha sem fendas é como um homem sem falhas. Não interessa.
A geopolítica de muitos países é diretamente afetada por suas características físicas. Os relevos planos favorecem o invasor, isso explica, em parte, o interesse da Rússia na Ucrânia e na Bielorrússia, vizinhos estratégicos para maior controle da extensa planura ocidental russa. As montanhas, por sua vez, são uma maior segurança aos possíveis alvos de agressão.
A decisão de um ataque ao Irã pelos EUA terá que considerar aspectos da geografia mais hostil da antiga Pérsia, onde montanhas e desertos se mesclam, diferentemente do que ocorreu na invasão iraquiana durante a Guerra do Golfo, 30 anos atrás, quando a planície mesopotâmica favorecia o avanço das forças ali envolvidas e o sucesso das operações aéreas realizadas.
O vigor das formas de relevo montanhosas pode gerar constrangimentos difíceis de serem ultrapassados e os ataques aéreos, isoladamente, podem não solucionar, ou seja, o equilíbrio das forças de guerras é modificado por essa geografia. Geralmente, guerras contra povos das montanhas devem ser travadas no solo, se os envolvidos buscam soluções mais rápidas.
Talvez isso explique o enfrentamento, quase medieval, entre o exército chinês e indiano no topo himalaio, em meados de 2020, que, durante sete horas, a 4200 metros de altitude se enfrentaram numa noite escura como breu, com pedras, paus cravejados, barras de ferro e lutas corporais (ao amanhecer havia algumas dezenas de mortos e feridos). Afinal, é a montanha que estabelece o ritmo no telhado do mundo.