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Estado de Minas TOMARAM O PODER

Afeganistão: quem são os Talibãs?

Eliminação do movimento político era o objetivo dos EUA em 20 anos de ocupação; mas o Talibão se fortaleceu e reassumiu o controle perdido em 2001


16/08/2021 09:48

Milhares de talibãs se misturam a refugiados, que tentam deixar o País, depois da tomada do poder pelo movimento fundamentalista(foto: Alexander NEMENOV / AFP)
Milhares de talibãs se misturam a refugiados, que tentam deixar o País, depois da tomada do poder pelo movimento fundamentalista (foto: Alexander NEMENOV / AFP)


Provavelmente, o Talibã encontra-se nas manchetes de todos os jornais do mundo neste momento. Enquanto escrevia este artigo, seus membros assumiam o controle do Afeganistão , após a saída do presidente do país, no último domingo (15/08). 

O Afeganistão é um país composto por diversos grupos étnicos. Estima-se que a população afegã seja de 38 milhões de habitantes (2019). Os pashtuns são um desses grupos e a base dos integrantes do Talibã, que se declaram muçulmanos sunitas

Estima-se que eles constituam 45% da população, mas alguns especialistas acreditam que eles representem mais de 60%. Os demais grupos étnicos, agrupados em ordem decrescente são os tadjiques, os uzbeques e os hazaras (muçulmanos xiitas).  

Os pashtuns se veem como verdadeiros afegãos, superiores aos membros de outras grupos étnicos. Os hazaras, segundo eles, estão em último lugar, o que ajuda a compreender a perseguição constante a essa etnia. 

No Ocidente, o significado do termo Talibã não está relacionado ao que existe no Afeganistão; há uma insurgência nesse país e, seus atores não têm relação direta como veiculado pelos ocidentais: relação com o 11 de setembro.  

Em terras afegãs, Talibãs são insurgentes do Exército do Mulá Omar. Representam um movimento político que encontra sua origem na cultura pashtun, o grupo étnico majoritário do país, e, portanto, seus objetivos, meios e costumes derivam mais dessa cultura do que do islamismo radical .

O termo Talibã significa estudante, na língua pashto, e refere-se aos alunos que aprendem teologia dentro das madrassas, as escolas religiosas que privilegiam o estudo e a memorização do Alcorão, controladas pelos mulás. O termo foi associado ao Exército do Mulá Omar porque, originalmente, seu movimento foi iniciado com a ajuda dos alunos de sua madrassa. Por outro lado, os "talibãs" de hoje não são mais estudantes.
 
Quando o conceito foi difundido servia para explicar a natureza e o fim do conflito , que eclodiu em 2001. Natureza no sentido de que o Talibã era visto como uma das causas ativas dos ataques do 9-11, ao abrigar o líder da Al-Qaeda (autora dos atentados em Nova York), Osama Bin Laden, e o fim, no sentido de que o conflito duraria até que a ameaça do retorno político e militar do Talibã estivesse extinta. 

Já sabemos que os EUA não atingiram, na totalidade, seu objetivo. O Vietnã deve pairar, sombriamente, sobre as cabeças dos falcões do Pentágono.

Se o conceito do Talibã (como, exclusivamente, um grupo radical islâmico) é mais um mito do que aquilo que realmente existe no país, fica mais fácil entender o fracasso da missão norte-americana  no Afeganistão.  O Talibã não reflete a complexidade cultural afegã e, sem a compreensão deste contexto cultural, não se derruba o mito. Portanto, a natureza e o fim da missão no Afeganistão estavam fadados ao insucesso , como a história comprovou. 

Os pashtuns têm características que os diferenciam de outros grupos étnicos da região. A característica tribal, além de ser uma estrutura de identidade, é uma entidade política que controla e administra um território. Desempenha uma série de funções, como a segurança de um território.  O poder tribal é superior ao do estado, o que explica os frequentes conflitos entre esses grupos com os governos afegãos ou paquistaneses.

As tribos aplicam suas próprias leis, derivadas de suas tradições, que podem ou não estar relacionadas à religião ou à lei estadual. Isso explica por que as leis originadas em áreas urbanas têm dificuldade de aplicação em áreas rurais. É quase impossível um estado moderno expressar sua soberania nessas regiões.

Desde a criação do Afeganistão, embora os governantes fossem quase todos pashtuns, Cabul nunca controlou as regiões pashtuns. 

Os pashtuns cumprem um código normativo rígido, o Pashtunwali. Esse código não escrito, de tradição oral, é passado de pai para filho. A descendência é patrilinear (linhagem paterna), possuir terras ou um rebanho é fundamental e devem ser defendidos pela força. Uma criança nascida de um pai sem terras ou rebanho pode perder seu status de "pashtun". 

Os pashtuns definem sua honra pela árvore genealógica e a importância no status social que isso representará dentro da tribo. Um ataque à sua honra afeta todos os seus descendentes, não apenas sua individualidade. Portanto, estão sempre prontos para colocar suas vidas em risco para restaurar a honra, em nome de suas famílias. 

Quem não defende a honra, a propriedade ou se deixa ser insultado ou tratado com escárnio não é digno de ser pashtun. A honra torna-se sinônimo de reconhecimento público ou de glória, base do código Pashtunwali, que rege os Pashtuns, mais que a própria religião islâmica. 

Isso faz que conflitos sejam frequentes entre parentes e os diversos membros que compõem as tribos. A luta faz parte da cultura desses grupos, mas tais conflitos são abandonados e todos se unem contra qualquer grupo estrangeiro que questione a soberania do grupo ou do país. 

O estrangeiro, muçulmano ou não, é frequentemente rotulado como Kafir (infiel).  Uma vez que a ameaça do exterior passa, os conflitos internos podem continuar de onde pararam. Provavelmente, ocorrerá a permanência de tensões internas quando as tropas norte-americanas e aliadas se retirarem definitivamente do país. 

As investidas estrangeiras enfrentam um povo que tem como valores defendidos pelo Código Pashtunwali a honra, a bravura, a independência, a competição, a justiça e a hospitalidade.

Um homem que demonstra bravura ganha respeito na comunidade. Um provérbio pashtun diz que é melhor ter uma morte honrada do que viver na desonra. Esta importância da bravura foi e é ainda perceptível no campo de batalha afegão; os insurgentes têm pouco ou nenhum medo de morte. 

A perda da liberdade e da independência não são aceitáveis a esse grupo. Mesmo que economicamente seja vantajoso, não se submetem a outro grupo. Eles lutam por sua liberdade à custa de seu conforto. Ter conhecimento desse valor é crucial para entender por que resistiram a todos os impérios que tentaram dominá-los. A independência afegã é imprescindível para esse povo. Assim, a união, em face da adversidade, dificulta a manutenção e controle das terras afegãs pelos forasteiros. 

Para vencer uma disputa, usam de todos os meios. São competitivos e as derrotas são uma desonra. Para atingir seus objetivos, vendem papoulas, produzem ópio, sequestram, recebem propinas, matam... Os meios justificam os fins. 

Os pashtuns consideram a lei da retaliação uma expressão de justiça. O código ensina que um pashtun merece vingança por uma injustiça na base do “olho por olho, dente por dente.“

A ação judicial é rápida e, muitas vezes, sangrenta. Por isso, todos que se beneficiaram, trabalharam ou colaboraram com os norte-americanos estão temendo por suas vidas. Há, infelizmente, possibilidade de muitas mortes no futuro próximo, com a tomada de poder. Os talibãs dizem que não, mas a história os desmente. 

A hospitalidade, entretanto, é inerente a esse grupo. Os pashtuns protegem com a vida quem eles recebem (por isso a resistência em entregar Bin Laden, em 2001). São capazes de endividar para oferecer ao hóspede luxos que não podem pagar por si próprios. A hospitalidade é uma virtude e uma demonstração de honra e poder. 

Infelizmente, o  papel positivo das mulheres, no microuniverso pashtun, está ausente . Nesta realidade familiar, exclusivamente masculina, as mulheres não acrescentam nada de glorioso ao mito da família. A única possível contribuição das mulheres para a história familiar pode ser negativa, pois qualquer insulto a uma mulher é considerado contra todos. 

Uma afronta em relação à sexualidade da mulher contamina a história familiar. Um boato extraconjugal mancha a honra da linhagem a que pertence e se perpetua na posteridade. Homens pashtuns não aceitam a desonra, que se torna um legado para as outras gerações. Ser, historicamente, reconhecido como um corno e de ser incapaz de controlar suas esposas é algo inaceitável. 

Os homens “protegem”, assim, a honra das mulheres construindo suas casas como fortalezas, impedindo-as de locomoverem-se sozinhas, proibindo o acesso à educação e impondo o uso da burca (essas roupas geralmente são costumes que remontam aos tempos pré-islâmicos, não as associe de forma generalizada ao Islã). São todas tentativas para evitar manchar a honra masculina por deslealdade feminina. A mulher infiel, geralmente, é sacrificada, para a família recuperar a honra.

As mulheres são mercadorias e, como tal, são comercializadas. São compradas de uma família para outra, ainda crianças. A descendência familiar feminina é dissolvida na história da família de seu marido, uma vez que o casamento foi realizado. A utilidade das mulheres está restrita à manutenção doméstica e na reprodução. 

A violência conjugal é comum e cria laços entre as mulheres. As histórias infelizes criam uma interação entre elas. Historiadores mencionam que as meninas são, desde tenra idade, expostas a ataques físicos de seus entes queridos, para que aprendam a realidade de ser mulher. A função social é agradar seus maridos ou dar à luz filhos homens.

Bem, culturalmente, essas são as características essenciais que moldam os insurgentes afegãos que compõem o Talibã. Quem quer que chegue agora terá que negociar com esse grupo. Não entender as facetas culturais do Afeganistão e, principalmente, dos pashtuns, fez deste território montanhoso e desértico, multifacetado de povos muito peculiares, um cemitério de impérios. 

Os EUA talvez considerassem que suas armas inteligentes eram mais poderosas que um povo e as usaram durante 20 anos. Enganaram-se. Não foram suficientes para vencer a determinação bruta afegã-pashtun, que é capaz de tudo para defender a honra e a propriedade.  Os norte-americanos saem humilhados. Agora vêm as incertezas e o medo. Mas são temas para outro momento.

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