Provavelmente, o Talibã encontra-se nas manchetes de todos os jornais do mundo neste momento. Enquanto escrevia este artigo, seus membros assumiam o controle do Afeganistão, após a saída do presidente do país, no último domingo (15/08).
O Afeganistão é um país composto por diversos grupos étnicos. Estima-se que a população afegã seja de 38 milhões de habitantes (2019). Os pashtuns são um desses grupos e a base dos integrantes do Talibã, que se declaram muçulmanos sunitas.
Leia Mais
O futuro incerto do AfeganistãoMais de 60 países pedem para que afegãos e estrangeiros possam deixar AfeganistãoAfeganistão: as imagens que mostram o caos e o desespero dos afegãos após a entrada do Talebã em CabulA ofensiva dos talibãs no Afeganistão desde maioNa África, um drama expulsa o outro: o conflito da Etiópia e SudãoA harmonia e a ordem nos dias atuaisVídeo antigo da execução de uma mulher circula associado ao Afeganistão em 2021Os pashtuns se veem como verdadeiros afegãos, superiores aos membros de outras grupos étnicos. Os hazaras, segundo eles, estão em último lugar, o que ajuda a compreender a perseguição constante a essa etnia.
No Ocidente, o significado do termo Talibã não está relacionado ao que existe no Afeganistão; há uma insurgência nesse país e, seus atores não têm relação direta como veiculado pelos ocidentais: relação com o 11 de setembro.
Em terras afegãs, Talibãs são insurgentes do Exército do Mulá Omar. Representam um movimento político que encontra sua origem na cultura pashtun, o grupo étnico majoritário do país, e, portanto, seus objetivos, meios e costumes derivam mais dessa cultura do que do islamismo radical.
O termo Talibã significa estudante, na língua pashto, e refere-se aos alunos que aprendem teologia dentro das madrassas, as escolas religiosas que privilegiam o estudo e a memorização do Alcorão, controladas pelos mulás. O termo foi associado ao Exército do Mulá Omar porque, originalmente, seu movimento foi iniciado com a ajuda dos alunos de sua madrassa. Por outro lado, os "talibãs" de hoje não são mais estudantes.
Quando o conceito foi difundido servia para explicar a natureza e o fim do conflito, que eclodiu em 2001. Natureza no sentido de que o Talibã era visto como uma das causas ativas dos ataques do 9-11, ao abrigar o líder da Al-Qaeda (autora dos atentados em Nova York), Osama Bin Laden, e o fim, no sentido de que o conflito duraria até que a ameaça do retorno político e militar do Talibã estivesse extinta.
Já sabemos que os EUA não atingiram, na totalidade, seu objetivo. O Vietnã deve pairar, sombriamente, sobre as cabeças dos falcões do Pentágono.
Se o conceito do Talibã (como, exclusivamente, um grupo radical islâmico) é mais um mito do que aquilo que realmente existe no país, fica mais fácil entender o fracasso da missão norte-americana no Afeganistão. O Talibã não reflete a complexidade cultural afegã e, sem a compreensão deste contexto cultural, não se derruba o mito. Portanto, a natureza e o fim da missão no Afeganistão estavam fadados ao insucesso, como a história comprovou.
Os pashtuns têm características que os diferenciam de outros grupos étnicos da região. A característica tribal, além de ser uma estrutura de identidade, é uma entidade política que controla e administra um território. Desempenha uma série de funções, como a segurança de um território. O poder tribal é superior ao do estado, o que explica os frequentes conflitos entre esses grupos com os governos afegãos ou paquistaneses.
As tribos aplicam suas próprias leis, derivadas de suas tradições, que podem ou não estar relacionadas à religião ou à lei estadual. Isso explica por que as leis originadas em áreas urbanas têm dificuldade de aplicação em áreas rurais. É quase impossível um estado moderno expressar sua soberania nessas regiões.
Desde a criação do Afeganistão, embora os governantes fossem quase todos pashtuns, Cabul nunca controlou as regiões pashtuns.
Os pashtuns cumprem um código normativo rígido, o Pashtunwali. Esse código não escrito, de tradição oral, é passado de pai para filho. A descendência é patrilinear (linhagem paterna), possuir terras ou um rebanho é fundamental e devem ser defendidos pela força. Uma criança nascida de um pai sem terras ou rebanho pode perder seu status de "pashtun".
Os pashtuns definem sua honra pela árvore genealógica e a importância no status social que isso representará dentro da tribo. Um ataque à sua honra afeta todos os seus descendentes, não apenas sua individualidade. Portanto, estão sempre prontos para colocar suas vidas em risco para restaurar a honra, em nome de suas famílias.
Quem não defende a honra, a propriedade ou se deixa ser insultado ou tratado com escárnio não é digno de ser pashtun. A honra torna-se sinônimo de reconhecimento público ou de glória, base do código Pashtunwali, que rege os Pashtuns, mais que a própria religião islâmica.
Isso faz que conflitos sejam frequentes entre parentes e os diversos membros que compõem as tribos. A luta faz parte da cultura desses grupos, mas tais conflitos são abandonados e todos se unem contra qualquer grupo estrangeiro que questione a soberania do grupo ou do país.
O estrangeiro, muçulmano ou não, é frequentemente rotulado como Kafir (infiel). Uma vez que a ameaça do exterior passa, os conflitos internos podem continuar de onde pararam. Provavelmente, ocorrerá a permanência de tensões internas quando as tropas norte-americanas e aliadas se retirarem definitivamente do país.
As investidas estrangeiras enfrentam um povo que tem como valores defendidos pelo Código Pashtunwali a honra, a bravura, a independência, a competição, a justiça e a hospitalidade.
Um homem que demonstra bravura ganha respeito na comunidade. Um provérbio pashtun diz que é melhor ter uma morte honrada do que viver na desonra. Esta importância da bravura foi e é ainda perceptível no campo de batalha afegão; os insurgentes têm pouco ou nenhum medo de morte.
A perda da liberdade e da independência não são aceitáveis a esse grupo. Mesmo que economicamente seja vantajoso, não se submetem a outro grupo. Eles lutam por sua liberdade à custa de seu conforto. Ter conhecimento desse valor é crucial para entender por que resistiram a todos os impérios que tentaram dominá-los. A independência afegã é imprescindível para esse povo. Assim, a união, em face da adversidade, dificulta a manutenção e controle das terras afegãs pelos forasteiros.
Para vencer uma disputa, usam de todos os meios. São competitivos e as derrotas são uma desonra. Para atingir seus objetivos, vendem papoulas, produzem ópio, sequestram, recebem propinas, matam... Os meios justificam os fins.
Os pashtuns consideram a lei da retaliação uma expressão de justiça. O código ensina que um pashtun merece vingança por uma injustiça na base do “olho por olho, dente por dente.“
A ação judicial é rápida e, muitas vezes, sangrenta. Por isso, todos que se beneficiaram, trabalharam ou colaboraram com os norte-americanos estão temendo por suas vidas. Há, infelizmente, possibilidade de muitas mortes no futuro próximo, com a tomada de poder. Os talibãs dizem que não, mas a história os desmente.
A hospitalidade, entretanto, é inerente a esse grupo. Os pashtuns protegem com a vida quem eles recebem (por isso a resistência em entregar Bin Laden, em 2001). São capazes de endividar para oferecer ao hóspede luxos que não podem pagar por si próprios. A hospitalidade é uma virtude e uma demonstração de honra e poder.
Infelizmente, o papel positivo das mulheres, no microuniverso pashtun, está ausente. Nesta realidade familiar, exclusivamente masculina, as mulheres não acrescentam nada de glorioso ao mito da família. A única possível contribuição das mulheres para a história familiar pode ser negativa, pois qualquer insulto a uma mulher é considerado contra todos.
Uma afronta em relação à sexualidade da mulher contamina a história familiar. Um boato extraconjugal mancha a honra da linhagem a que pertence e se perpetua na posteridade. Homens pashtuns não aceitam a desonra, que se torna um legado para as outras gerações. Ser, historicamente, reconhecido como um corno e de ser incapaz de controlar suas esposas é algo inaceitável.
Os homens “protegem”, assim, a honra das mulheres construindo suas casas como fortalezas, impedindo-as de locomoverem-se sozinhas, proibindo o acesso à educação e impondo o uso da burca (essas roupas geralmente são costumes que remontam aos tempos pré-islâmicos, não as associe de forma generalizada ao Islã). São todas tentativas para evitar manchar a honra masculina por deslealdade feminina. A mulher infiel, geralmente, é sacrificada, para a família recuperar a honra.
As mulheres são mercadorias e, como tal, são comercializadas. São compradas de uma família para outra, ainda crianças. A descendência familiar feminina é dissolvida na história da família de seu marido, uma vez que o casamento foi realizado. A utilidade das mulheres está restrita à manutenção doméstica e na reprodução.
A violência conjugal é comum e cria laços entre as mulheres. As histórias infelizes criam uma interação entre elas. Historiadores mencionam que as meninas são, desde tenra idade, expostas a ataques físicos de seus entes queridos, para que aprendam a realidade de ser mulher. A função social é agradar seus maridos ou dar à luz filhos homens.
Bem, culturalmente, essas são as características essenciais que moldam os insurgentes afegãos que compõem o Talibã. Quem quer que chegue agora terá que negociar com esse grupo. Não entender as facetas culturais do Afeganistão e, principalmente, dos pashtuns, fez deste território montanhoso e desértico, multifacetado de povos muito peculiares, um cemitério de impérios.
Os EUA talvez considerassem que suas armas inteligentes eram mais poderosas que um povo e as usaram durante 20 anos. Enganaram-se. Não foram suficientes para vencer a determinação bruta afegã-pashtun, que é capaz de tudo para defender a honra e a propriedade. Os norte-americanos saem humilhados. Agora vêm as incertezas e o medo. Mas são temas para outro momento.