Há quase 60 anos, o agrônomo francês René Dumont escrevia o livro, “A África negra começou mal” (1962), em tradução literal da língua francesa, com um diagnóstico contrário ao otimismo que prevalecia nas novas nações que alcançavam a independência política. Dumont apontava para os perigos da inadequação das políticas agrícolas e educacionais, da corrupção, do nepotismo e da grilagem das terras. Décadas depois, suas ideias eram visões viraram realidade.
O continente não experimentou o desenvolvimento esperado e afundou numa sucessão de dramas. Não se pode afirmar que os africanos sejam resilientes. A resiliência significa superar a provação e garantir que ela não volte. Na África estão sempre a esperar por um próximo evento dramático e nunca se sabe se será mais devastador que o anterior.
Os africanos, com toda razão, ardorosamente evidenciam e difamam o passado colonial, uma prova inquestionável de que estão cientes dos delitos tenebrosos cometidos pelos europeus, mas não trabalharam muito para reconstruir seus países.
A partida dos senhores coloniais cedeu espaço a homens que se colocaram como os novos senhores, criando em torno deles castas privilegiadas, com regimes políticos invadidos pelo nepotismo, contaminando a política em escala quase continental, caracterizada pelo desperdício de capital econômico e pela política de grandeza que pouco beneficiam o cidadão comum.
Mesmo com avanços em alguns setores da economia, o que se percebe é o subdesenvolvimento quase contínuo da África. Não se pode responsabilizar tal realidade às condições naturais desfavoráveis.
As causas desse quase total fracasso socioeconômico devem-se muito às autoridades políticas nos períodos colonial e pós-colonial em não adotar estratégias mais adequadas em relação à tecnologia, agricultura camponesa, industrialização, educação, ampliação do serviço público, ajuda externa e integração regional, que somados poderiam ter gerado resultados mais sólidos nas diversas áreas sociais, consideradas básicas e essenciais a qualquer prelúdio de desenvolvimento.
Há muitas expectativas de que o continente se torne o novo eldorado dos investimentos, com um mercado em expansão e novas obras de infraestrutura que alicerçarão os avanços futuros. Mas há um longo caminho a percorrer para consolidar todas essas premissas, principalmente, no que se refere às questões étnico-culturais.
Um claro sinal de que há muito o que solucionar envolve a Etiópia. O mundo ainda não colocou em situação de emergência as inquietudes que estão brotando no Chifre da África, envolvendo tensões internas entre grupos étnicos etíopes, e externos com o vizinho Sudão, devido a disputas territoriais.
A Etiópia é um país que passa por ciclos históricos de maior robustez, e depois, precários e está na fase atual em um daqueles momentos muito, muito precários, segundo os analistas internacionais.
Há quase um ano, um grave conflito eclodiu no norte do país, na região do Tigray, e com ele um desastre humanitário que pode colocar milhões de pessoas em situação extrema de fome, como não ocorre há décadas no mundo.
O atual presidente, Abiy Ahmed, ironicamente ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2019, se envolveu em um conflito sangrento, em novembro de 2020, com a Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF), o partido governante da região norte de Tigray, que havia dominado a política etíope até ser marginalizado por Abiy, a partir de 2018.
O novo líder implantou mudanças liberalizantes, que chegaram a encantar líderes internacionais, mas que intensificaram o nacionalismo internamente. Desde então, o cenário se agravou, transformando-se numa guerra civil de fato. Com a guerra se espalha a fome, fluxos maciços de refugiados, mortes generalizadas de civis, agressões sexuais e temores de limpeza étnica.
As mortes e destruições originadas da crise de Tigray podem camuflar a pouca atenção dada ao potencial de um segundo conflito mortal que pode engolfar a Etiópia, decorrente das tensões crescentes com seu vizinho Sudão. Embora às vezes os detalhes sejam complexos e técnicos, em sua essência, o conflito em andamento entre o Sudão e a Etiópia tem a mais básica das motivações: controle sobre a terra e a água.
A disputa de terras entre os dois países remonta há mais de um século como resultado dos acordos da era colonial, que demarcavam a fronteira entre os dois países.
A maior disputa é por uma porção de terra conhecida como Al-Fashqa, que os dois países reivindicam como sua. Um acordo desta disputa territorial ocorreu em 2008 quando a Etiópia, liderada pela TPLF, concordou em reconhecer a soberania formal do Sudão sobre a área. Em troca, o Sudão, liderado pelo ditador de longa data, Omar al-Bashir, permitiria que colonos etíopes permanecessem na área sem ser incomodados.
Entretanto, ambos os governos caíram, e com eles o acordo. Quando as forças etíopes foram desviadas da defesa de al-Fashqa para lutar em Tigray, os militares sudaneses retornaram para a área.
A possibilidade de uma guerra por Al-Fashqa é genuína. Duas décadas atrás, a disputa sobre uma área de fronteira com menor valor comercial entre a Etiópia e a Eritreia levou a uma guerra sangrenta entre os dois países. O acordo que deu fim a esse conflito foi o que rendeu a Abiy o Prêmio Nobel da Paz (muitos se arrependem dessa premiação).
Os grupos etíopes em Al-Fashqa pertencem, em sua maioria, à etnia Amhara, cujas milícias estão entre as forças pró-Abiy mais ferozes contra a TPLF na atual crise etíope, do norte do país. Os Amhara, que há muito reclamam que suas terras foram tomadas por outros grupos, estão tentando usar a guerra do Tigray para recuperar territórios. Até o momento, o presidente não sinalizou que esteja disposto a negociar essa área com o Sudão.
Por outro lado, os militares sudaneses têm sido inflexíveis e já declararam que não vão desistir de um centímetro das terras do Sudão, mesmo que isso comprometa as boas relações cultuadas nos últimos anos ok com a Etiópia. A chegada de dezenas de milhares de refugiados de Tigray no Sudão, através de Al-Fashqa, agrava ainda mais as tensões.
E como nada é tão ruim que não possa piorar, um confronto, até agora não violento, mas potencialmente maior, está se formando pelo controle do rio Nilo, envolvendo também o Egito.
Após 10 anos de construção, a Etiópia começou a encher o reservatório da Grande Barragem da Usina Renascença Etíope, no Nilo Azul, o principal afluente do Nilo Branco, que forma o Rio Nilo propriamente dito. A Etiópia afirma que o projeto, uma das maiores hidrelétricas do mundo, é necessário para atender às crescentes necessidades de energia do país.
Os países à jusante (rio abaixo) da usina, Sudão e Egito, por outro lado, alertaram que as interrupções no fluxo do rio Nilo seriam devastadoras para a economia e a sociedade. Os governos egípcio e sudanêsexigiram que a Etiópia compartilhe com eles informações e o controle das operações da hidrelétrica. A Etiópia rejeitou o pedido alegando que tal atitude era uma violação de sua própria soberania.
As tentativas diplomáticas de negociação entre os três países não deram nenhum resultado prático até agora e ambos sugeriram uma ação militar contra os etíopes, caso uma solução pacífica não seja alcançada e a obra comprometa o abastecimento de água e as enchentes periódicas do Nilo. Exercícios militares conjuntos foram realizados, no início de 2021 pelo Egito e Sudão, com o sugestivo nome de “Guardiões do Nilo”.
A proximidade do Sudão com a Etiópia torna provável que qualquer luta pela usina hidrelétrica acabe, em grande parte, entre as forças sudanesas e etíopes, especialmente devido a outra fonte de tensão existente ao longo da fronteira.
Até agora nem a Etiópia nem o Sudão sinalizaram muito em termos de compromisso para evitar uma guerra. Mas espera-se que percebam que nenhum deles pode ostentar, por longo tempo, os riscos envolvidos em um grande conflito que os absorvam. Um acordo, mesmo que para salvar as aparências, seria a melhor e mais segura opção para ambos os países e espera-se que assim seja.
Enquanto isso, torcer para que não surja um novo drama, entre tantos, na África.