O ano de 2022 amanheceu mais tenso na Ásia Central. No dia 2 de janeiro, grandes manifestações eclodiram na região oeste de Mangistau e Almaty, no Cazaquistão, um dia após o anúncio do aumento exorbitante do preço do combustível, especialmente, o gás liquefeito de petróleo (GLP).
Segundo os analistas, somada ao aumento dos combustíveis, há uma insatisfação com o sistema político e com as questões econômicas do governo autoritário de Kassym-Jomart Tokayev (acusado de opressão, prisão dos opositores para permanecer no poder), que corroboram com o cenário de tensão que se instalou no país, desde então.
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A riqueza, todavia, não é bem distribuída. O salário médio é de 500 euros e a corrupção corre solta, como em boa parte das nações subdesenvolvidas. Apesar desse cenário, nunca haviam ocorrido levantes dessas proporções. A faísca foi o aumento do GLP, que dobrou de preço, no primeiro dia do ano.
Segundo o Whashington Post, entre 70 a 90% dos veículos são movidos a GLP. A pandemia da COVID-19 afetou a economia do país e os subsídios do governo à energia foram suspensos. Com o aumento do valor do combustível, o panorama foi agravado, comprometendo outras cadeias produtivas, como a de alimentos, cujos preços estão inflacionados desde o início da pandemia.
As tensões agravaram e o presidente declarou estado de emergência no país. A Rússia tentou se manter distante, acreditando em uma ação rápida e satisfatória do governo, mas viu-se obrigada a agir com o enfraquecimento de Tokayev.
Há suspeitas de interferências externas, pois, mesmo após o governo anunciar a renúncia do seu gabinete (o que causou revolta entre o clã de Nursultan Nazarbayev, ex-presidente, destituído do poder),recuar no aumento dos combustíveis e prometer transformações políticas, as manifestações continuaram.
O agravamento das tensões levou o presidente cazaque a pedir ajuda a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), a aliança criada em 2003, que tem a Rússia como maior liderança. Tokayev, ao buscar apoio, demonstra não confiar totalmente no aparato de segurança, que até o dia 06/01 estava nas mãos de pessoas ligadas a Nursultan Nazarbayev. Imagens de forças policiais e soldados simpatizando com os manifestantes foram divulgadas, aumentando essas suspeitas.
Há alguns indícios de que os movimentos tenham surgido dentro do governo ou apoiados por membros do alto escalão governamental, uma vez que há representantes acusados de alta traição e o grande número de policiais mortos, fato que é bem raro nesses cenários.
Pela primeira vez na história da OTSC, o Governo do Cazaquistão invocou a Artigo 4, a cláusula que afirma que um ataque armado a um dos membros será considerado um ataque a todos (muito similar ao Artigo 5 da OTAN). Nas primeiras horas do dia 06 de janeiro, Tokayev pegou o telefone da Organização e pediu apoio.
Em poucas horas, milhares de paraquedistas e forças especiais russas e bielorussas estavam a caminho de Almaty, a capital econômica do país, onde havia uma das maiores manifestações. O intuito foi o de controlar o levante. Os demais membros (Quirquistão, Armênia e Tadjiquistão) enviaram apoio, mesmo que em menor número.
A situação tensa evoluiu, com dezenas de civis e policiais mortos (mais de 160), além de milhares de feridos (mais de 5800). As medidas adotadas pelo presidente não dispersaram os manifestantes, que passaram a exigir a expulsão de toda a força política regional (indicada pelo presidente, desde a independência, em 1991). Não havia antes uma oposição real a essas autoridades.
Tokayev prometeu uma resposta enérgica aos manifestantes, a quem chamou de criminosos terroristas, treinados no exterior. O líder recusou qualquer negociação e deu ordens de “atirar para matar”. A rede de internet foi cortada no país, como meio de evitar a propagação de imagens e informações. Um efeito colateral da suspensão da internet foi sobre o bitcoin, já que o Cazaquistão é o segundo “produtor” dessa criptomoeda. Em poucas horas a queda da produção foi de 12%.
Mas ainda não há uma visão clara dos componentes sociológicos dessas manifestações. Cada liderança que se projeta, a polícia prende. Parece um movimento multifacetado, com atores insatisfeitos com o cenário econômico atual. A estabilidade do país foi colocada em xeque. Manifestações destas proporções não eram comuns. A maior ocorreu há mais de 10 anos.
Toda essa tensão eclodiu dias antes do encontro entre os emissários da Rússia e dos EUA, em Genebra, com o objetivo de traçar um plano de neutralização da crise ucraniana, previsto para o dia 10 de janeiro.
O Kremlin acusa o Ocidente de lançar uma nova “Revolução Colorida”, às vésperas das principais negociações, para enfraquecer Putin e a sua presença massiva na fronteira da Ucrânia, que alimenta os riscos constantes de uma guerra. Moscou não aceita os protestos no Cazaquistão como genuínos.
Uma ação militar comandada por Moscou na antiga república soviética ainda, é incerta. Em parte, devido à presença militar russa na Ucrânia e aos custos que isso implica. Mas uma enxurrada de tropas russas foi enviada para a região. Putin quer deixar claro que não permitirá nenhuma interferência externa nos países da ex-URSS, considerados por ele espaço inviolável da influência da Rússia.
Os interesses russos no Cazaquistão são múltiplos. Envolvem o Cosmódromo de Baikonur (a primeira e a maior base de lançamentos de foguetes do mundo, emprestada à Rússia a um custo de 115 milhões de dólares anuais), as reservas de gás do país para equilibrar a produção interna quando essa é insuficiente, as reservas de urânio e os russos étnicos presentes no país. Além, de ser um meio de reafirmar sua hegemonia regional.
A China, principal parceiro comercial, tem um interesse expressivo na estabilidade do território cazaque. O vizinho fornece, aproximadamente, 5% do gás natural consumido pelos chineses e o Cazaquistão é um país chave para o megaprojeto “Belt and Road Iniciative”. Os chineses continuam observando como falcões cada ato, e parecem felizes com a atuação russa.
O cenário é muito complexo. Há de se considerar a própria sociedade cazaque. Muitos são jovens e não viveram os processos revolucionários que antecederam a independência. O fortalecimento do Islamismo na região, com a vitória do Talibãs, no Afeganistão, pode exercer influência sobre esses jovens. Os líderes mais antigos da era soviética podem ser rejeitados pela nova geração que cresceu sob a independência e em um ambiente muito mais inspirado no Islã.
Os EUA pouco podem fazer. Nem um embaixador possuem lá, nesse momento. Podem dizer às autoridades para retomar a normalidade da internet, evitar a violência e pressionar, a longo tempo, a realização de eleições livres. Mas práticas, como sanções econômicas, não são adequadas. As principais empresas de energia norte-americanas estão profundamente integradas à economia do país. As sanções afetariam a produção e o fornecimento de combustíveis dessas empresas, impactando e economia de forma mais global.
As cartas da geopolítica global foram novamente colocadas à mesa. A presença russa gera incertezas e pode comprometer a soberania cazaque. Se Tokayev for bem sucedido, controlar as tensões e se sobrepuser à dinastia de Nazarbayev, com o apoio de Putin, fica em dívida com Moscou. Uma “nova Belarus” das estepes pode surgir daí. São cenas dos próximos capítulos. Por enquanto, são especulações.