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Estado de Minas CONFLITO NA EUROPA

A guerra da Ucrânia e a segurança alimentar global

Os preços globais de alimentos sobem à medida que a guerra se intensifica, deixando as famílias mais pobres com mais fome


07/03/2022 06:00 - atualizado 07/03/2022 10:57

Mulher lamenta em frente a uma casa em chamas bombardeada na cidade de Irpin, nos arredores de Kiev, na sexta (4).
Mulher lamenta em frente a uma casa em chamas bombardeada na cidade de Irpin, nos arredores de Kiev, na sexta (4) (foto: Aris Messinis/AFP)


Um dos desdobramentos da crise que atinge a Ucrânia, desde o dia 24 de fevereiro, envolve diretamente a produção de alimentos e ameaça a segurança alimentar global.

O setor alimentício já sofria as consequências da pandemia, da redução de algumas safras devido as colheitas ruins nos países produtores da América do sul, do aumento da demanda global e os efeitos da diminuição da cadeia de suprimentos. Somados esses fatores afetaram o mercado das oleaginosas e grãos aumentando seus preços nos últimos 24 meses.

Com a guerra iniciada após a invasão da Ucrânia pela Rússia, o cenário futuro não é nada otimista. Os impactos na produção de alimentos, a curto prazo, serão muito elevados com a provável redução da oferta de gás natural e fertilizantes. 

A aceleração inflacionária dos produtos agrícolas é consenso entre os especialistas. É importante considerar, que localmente, a migração prevista entre 1,5 a 5 milhões de ucranianos eleva os riscos de agravamento da crise alimentar.

O papel estratégico da região do Mar Negro na produção de alimentos 

A região do Mar Negro, localizada ao sul da Ucrânia, tem um papel estratégico na logística da produção e do escoamento de parte significativa das commodities agrícolas, comercializados pela Ucrânia e pela Rússia. 
 
A Ucrânia e a Rússia exercem um papel relevante na oferta de alimentos em escala mundial, desde o fim da ex-União Soviética.  Os dois países passaram de importadores para grandes exportadores de alimentos nas três últimas décadas.

Juntos, respondem por cerca de 12% de total de calorias comercializadas no mundo e estão entre os cinco maiores fornecedores de grãos como trigo, cevada, girassol e milho. Isoladamente, a Ucrânia responde por cerca de 50% do óleo de girassol do mundo.

Algumas regiões do planeta sofrerão, drasticamente, com a redução da oferta desses produtos. O Norte da África  e o Oriente Médio dependem em mais de 50% da Ucrânia no abastecimento de trigo e cevada. A China e a União Europeia (UE) consomem parte significativa do milho ucraniano. A duração da guerra que parece cada vez mais incerta terá impacto imediato sobre as exportações agrícolas de ambos países.
 
De modo geral, as colheitas de trigo e cevada ocorrem no verão (junho a setembro) e as exportações no outono (setembro  a dezembro); ao findar do inverno (dezembro a março), as vendas estão praticamente concluídas.  As exportações de milho da Ucrânia são expressivas na primavera (que inicia no dia 20 de março) e no verão.  

Esses produtos são escoados a partir de Odessa, a cidade ao sul do país, que enfrenta uma das maiores investidas militares da Rússia. Os violentos bombardeios comprometem a infraestrutura e isso afetará a capacidade da Ucrânia de exportar seus grãos, tanto para o mercado interno quanto o externo, em especial. As exportações ucranianas serão reduzidas a um fio. 

O plantio de vários grãos inicia em março/abril, durante a primavera (como a cevada e o milho, respectivamente). A guerra vai impedir a maior parte do plantio dentro do ritmo normal e consequentemente haverá comprometimento do abastecimento global desses alimentos, entre outros.

Os efeitos da guerra sobre fertilizantes e a produção de energia 

As sanções impostas à Rússia pelos Estados Unidos, União Europeia e outros países afetarão as exportações de gás natural e petróleo russos. A Rússia responde por 20% do mercado global de gás natural e 40% das importações da UE. 

As contramedidas impostas ao país podem elevar os preços dos hidrocarbonetos a valores recordes. A Europa pode comprar esses produtos de outros países, como os Estados Unidos, mas seria vítima de uma logística negativa.  Os Estados Unidos exportam gás natural liquefeito (GNL), de custo bem mais elevado e não há nenhuma certeza de que essa solução seria suficiente a curto e médio prazo. 
 
O gás natural é uma importante matéria-prima para a produção de fertilizantes nitrogenados, como amônia e a ureia. A situação agrava, pois a Rússia é um dos grandes fornecedores desses fertilizantes nitrogenados e de potássio (15 e 17% do mercado mundial, respectivamente). A Bielorrússia, aliada da Rússia, responde por 16% do mercado global de potássio e sofrerá os efeitos das sanções internacionais.

A dependência de alguns países às importações russas e bielorrussas é elevada, como o Brasil (entre 30 a 40% do potássio consumido, nacionalmente). O aumento do custo de fertilizantes pode reduzir o seu uso por parte dos agricultores e como consequência reduzir a safras mundiais. Considerando que os estoques globais estão no limite, os preços dos alimentos podem atingir valores estratosféricos.  

Possíveis consequências imediatas 

Os países que possuem maior dependência da Ucrânia e da Rússia serão os mais afetados, inicialmente, com as restrições do mercado de grãos, principalmente, como os do Norte da África e Oriente Médio. A preocupação imediata recai sobre eles. O Egito é o maior importador de trigo e 85% desse cereal vem dos países em guerra.

As sanções impostas pelos países ocidentais, em especial, não deveriam impedir o abastecimento e a manutenção das exportações dos suprimentos russos, necessários a produção de alimentos, como fertilizantes e potássio.   É fundamental que alimentos e fertilizantes sejam, minimamente, afetados por essas punições. 

Qualquer medida contrária a esse cenário pode afetar as populações mundiais mais carentes, já vitimadas pela insegurança alimentar. Outra possibilidade, é os países ricos (e da própria Rússia) limitarem as exportações domésticas de alimentos e fertilizantes para assegurar o abastecimento interno. Essa medida pode desencadear um panorama nefasto aos países importadores de alimentos, mais vulneráveis. 

As penalidades internacionais devem considerar os dois cenários: aqueles destinados a Rússia/aliados e aos produtores domésticos das nações desenvolvidas. A tentativa de garantir o abastecimento interno pode intensificar a insegurança alimentar global. 

Qualquer medida contra os envolvidos nessa guerra deveria analisar, criteriosamente, a questão alimentícia e evitar que sejam aplicadas de forma severa a esse setor.  As sanções são importantes, mas não podem se sobrepor à produção agrícola, que garante a segurança alimentar mundial.

Os reflexos no Brasil

O Brasil é um dos maiores produtores de alimentos do mundo com destaque para a soja, café, cana de açúcar, carne e milho. Sua produção depende diretamente dos fertilizantes adquiridos no mercado Internacional. Cerca de 85% da demanda nacional é importada. 

A oferta de alimentos no Brasil foi acompanhada do aumento dos custos, em parte,   devido ao  peso das pressões inflacionárias sobre os agricultores, que enfrentaram  aumento expressivos dos insumos agrícolas nos últimos dois anos. O anúncio do Ministério da Indústria e Comércio da Rússia, feito no último dia 04 de marco, de suspender a oferta de fertilizantes para garantir a produção agrícola interna, irá refletir diretamente no setor agrícola brasileiro. 

Os preços dos fertilizantes estão disparados desde 2021 e o aumento mais elevado previsto com a guerra refletirá sobre os valores dos alimentos no país. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina Dias, informou que irá ao Canadá em busca de acordos comerciais que garantam a oferta de potássio ao Brasil (mais de 95% desse recurso é importado) e assim minimizar os impactos sobre a agricultura nacional. O Canadá é o maior produtor mundial de potássio, seguido pela Rússia e Bielorrússia. 

Segundo a ministra, os estoques do país atendem ao mercado até outubro. Mas essa informação não é compartilhada por todos. Segundo a Associação Nacional de Fertilizantes do Brasil, os estoques durarão pouco mais três meses. 

O governo anunciou que deve acelerar a exploração de potássio na região de Autazes-PA, em terra indígenas, mas esse processo pode demorar anos e não ser aprovado, caso   as exigências socioambientais não forem cumpridas. 

A inflação dos alimentos no país, elevada desde o início da pandemia, restringiu o acesso de muitas famílias a uma dieta mais equilibrada. As perspectivas futuras desse familias podem se deteriorar ainda mais com o conflito. 

Em escala global, o inchaço dos custos dos fertilizantes não deve permitir uma produção maior de alimentos do Brasil, o que compensaria  a redução da produção ucraniana-russa, mesmo  o país possuindo tecnologia para isso. O preço dos fertilizantes deve frear os investimentos no setor. 

A realidade da guerra afetará ainda mais um direito universal que nunca foi atendido, na sua totalidade, o direito à segurança alimentar. Há mais de 800 milhões de pessoas subnutridas no mundo (dados de 2016). Esses números podem aumentar expressivamente ao longo de 2022. 

Quem imaginou um mundo melhor com o enfraquecimento da pandemia, pode reavaliar seus conceitos. O que está por vir não é nada bom.  

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