Jornal Estado de Minas

GEOPOLÍTICA

Transnítria: o 'país desconhecido' que pode espalhar a guerra na Europa


A Moldávia é um pequeno país, sem saída para o mar, encravado entre a Romênia e a Ucrânia.  A região, uma ex-república soviética, torna-se independente em 1991, com o esfacelamento da antiga URSS. O pequeno território moldavo vai na contramão do incrível quebra-cabeça étnico, composto por um expressivo número de diferentes povos. Essa diversidade é a alavanca para a fragmentação, em regiões separatistas, desde a independência. 




 
 
 
Foi nesse complexo cenário de povos que, em março de 1992, a região da Transnítria se rebela, poucos meses depois da independência, e uma guerra eclode no país.  A colcha de retalho étnica está na raiz desse conflito. Foi após a Moldávia impor a língua romena como oficial, resultando na perda de influência dos falantes de russo dentro das instituições governamentais no país, que a ira da Transnítria foi despertada. 
 
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A estreita faixa de terra, com pouco mais de 4100 km2 (com 450 km de extensão e 10 km de largura) abriga quase 500 mil pessoas.  Desse total, 1/3 são de moldavos. O restante da população é de russos e ucranianos, que falam o russo. 

Milhares de pessoas morreram no conflito, apoiado pela Rússia, até que um cessar-fogo foi assinado, em julho do mesmo ano.  Como consequência, o território da Transnitria, a principal área industrial do país, foi amputado da Moldávia. A perda do controle dessa região simbolizou um recuo expressivo da economia moldava, pois, apesar de representar apenas 11% do território e 17% da população, mais de 40% do PIB era originário da zona separatista. Na época da separação, a Transnítria era duas vezes mais rica que a Moldávia, de acordo com o Le Monde.  

Desde o cessar-fogo, nenhum acordo de paz foi efetivado. Mas o conflito foi congelado. Nesses trinta anos, não ocorreram outros episódios de confronto envolvendo as duas regiões. 





Assim como no Dondass, a República Transnítria da Moldávia, foi autoproclamada independente, no final dessa guerra. A região possui sua própria capital, Tiraspol (que abriga Futebol Clube Sheriff Tiraspol, destaque mundial ao derrotar o Real Madrid, por 2 a 1, na Liga dos Campeões, em 2021), seu próprio governo, sistema educacional, exército, banco, moeda (rublo da Transnítria) e uma bandeira, com foice e martelo, numa clara referência ao passado soviético. 

A Transnítria é de fato independente, mas não foi reconhecida pela ONU e por nenhum Estado, nem mesmo pela Rússia, que, no entanto, a apoia amplamente. Mais de 1500 integrantes do exército russo estão estacionados ali, desde 1992. 

Oficialmente, o exército russo integra uma missão de paz, entre os dois campos divergentes, mas muitos historiadores creem que esses números são para envergonhar o governo moldavo, que insiste numa aproximação com a União Europeia (UE). O pedido foi oficializado em março de 2022, contrariando os interesses do Kremlin. Todavia, nunca demonstrou nenhum desejo de integrar a OTAN, a poderosa aliança militar ocidental.





A Rússia sempre teve interesse em ampliar sua influência em toda a ex-república soviética. No contexto atual, é mais estratégico e fundamental, a sua presença e o domínio, principalmente, na região separatista, localizada na fronteira sudoeste da Ucrânia e 100 km distante da cidade de Odessa, onde está o principal porto e saída marítima da Ucrânia, para acelerar o desfecho desse conflito. 

Para o controle dessa face meridional da Ucrânia, pelos russos a Transnítria torna-se um suporte tão importante quanto a Bielorrússia, ao Norte. A tomada do flanco sul pela Rússia, isola a Ucrânia e impede sua comunicação com o mar, garantindo, praticamente, vitória a Putin, na sua investida sangrenta no país considerado "quase irmão". 

Entre os dias 25 e 26 de abril, explosões ocorreram na região. No dia 27, drones foram vistos e disparos foram realizados próximos a um arsenal de munição russo. Felizmente, sem vítimas desses ataques. As lideranças da Moldávia e da própria Transnítria ainda não apresentaram responsáveis e estão cautelosas em apontar possíveis autores. A Rússia e a Ucrânia negam envolvimento nessas explosões. 





Essas investidas ocorreram pouco dias depois do Vice Comandante de defesa da Rússia Central sugerir que os russos eram alvos de "violenta opressão", na Moldávia. Esse foi um dos argumentos usados para invadir a Ucrânia, no final de fevereiro. Há um temor do Ocidente quanto ao avanço das forças russas sobre a Moldávia, um dos países mais pobres da Europa, com um exército fraco e reduzido (diferentemente, da Ucrânia), com pouco mais de seis mil integrantes.  A guerra, assim, se espalharia para mais um país europeu, modificando o status atual.

Desde 1994, a Moldávia defende sua neutralidade e a mantém no conflito atual. Apesar de ter recebido mais 435 mil refugiados ucranianos, nesses mais de dois meses de guerra, não adotou nenhuma sanção imposta à Rússia. Mas isso não bloqueia e não impede os interesses de Putin. 

Dificilmente, as tropas russas sairão da Transnítria, pois isso impede o governo moldavo de controlar todas suas fronteiras e, sem o controle fronteiriço e territorial, o país não pode aderir à UE, uma das exigências do bloco.





A presença russa é amparada pela oferta de gás natural gratuito à região. A conta é enviada para a Moldávia, que se vê obrigada a pagar. Uma ação contrária poderia ser interpretada como não reconhecimento de uma área pertencente a ela e, portanto, independente!

Mas a fidelidade da Transnítria não é tão plena. Desde 2014, após a anexação da Crimeia e a guerra que eclodiu no Donbass, a Ucrânia reforçou suas fronteiras. Com isso, as rotas de entrada e saída da Transnítria sofreram uma forte repressão, bloqueando parte expressiva do contrabando, que alimentava uma importante fonte de renda da região. 

Entretanto, tudo veio em um momento oportuno. O acordo de livre comércio, firmado entre a Moldávia e a UE, em 2014, incluía a Transnítria. Desde então, o comércio com os europeus cresceu continuamente, enquanto declinava com a Rússia. Atualmente, 70% das exportações da Transnítria são direcionados à Europa Ocidental. 

Uma possível ofensiva russa na Moldávia não pode ser descartada, mas a dependência de 100% do gás russo, dificulta uma posição de rebeldia do governo moldavo. A Transnítria não possui um efetivo de guerra para avançar contra a Ucrânia e não demonstra nenhum arrebatamento contra os moldavos. 





Por sua vez, os russos, para ampliarem sua presença, teriam que ter maciços ganhos na ofensiva ao sul da Ucrânia, mas há semanas que os avanços estão lentos e limitados. No cenário atual, as investidas russas seriam reduzidas e, preferencialmente, no noroeste de Odessa, com o intuito de causar mais pânico e efeitos psicológicos regionais e, assim beneficiar as operações ao sul da Ucrânia, a área de maior interesse de Putin.  

O governo russo pode reconhecer a independência da Transnítria, como fez com as repúblicas populares de Donetsk e Luhansk. Com esse reconhecimento, a Transnístria poderia pedir proteção extra à russa e Putin enviar algumas forças ou capacidades complementares para a região.  

Qualquer atividade desse tipo aumentaria muito as tensões e os temores na Moldávia e na vizinha Romênia, colocando pressão adicional sobre a OTAN, possivelmente dando a Putin uma "vitória" barata e distraindo as dificuldades da Rússia no leste da Ucrânia.  

Os cenários são múltiplos e ainda incertos. Um "país", desconhecido da grande maioria, está no centro do tabuleiro da geopolítica mundial. Há que aguardar como a Rússia vai avançar seus peões e como o Ocidente reagirá.