Quando a FIFA fez o sorteio da Copa do Mundo 2022, em abril, ficou claro que antigos rivais se encontrariam nos campos, expondo décadas de rivalidades geopolíticas. Entre esses enfrentamentos que chamaram a atenção, destacaram-se os duelos entre os EUA e o Irã, que acumulam décadas de tensões; e Sérvia e a Suíça, que no confronto de 2018 geraram um desconforto geoestratégico durante a partida e possíveis desfechos, à medida que o campeonato mundial avançava.
A partida entre os EUA e o Irã colocou frente a frente dois países inimigos desde a Revolução Islâmica Iraniana de 1979. O grande aliado norte-americano no Oriente Médio foi substituído por Aiatolá Khomeini, um líder teocrático muçulmano, em desacordo com os interesses estadunidenses, que repudiou os EUA, chamando a superpotência ocidental, pela primeira vez, de “o grande satã”, em plena Guerra Fria. Desde essa época, as relações diplomáticas entre eles foram cortadas.
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Lula: um fio de esperança em meio à turbulênciaComunismo, má-fé e desinformação: a grande verdade brasileira O paradoxo do envelhecerDe Bretton Woods à desdolarizaçãoInternamente, no Irã, desde meados de setembro, enfrenta as manifestações populares, desencadeadas após a morte violenta da jovem de origem curda iraniana, Mahsa Amini, pela polícia moral. Os protestos atraem apoiadores em todo o mundo e leva a desordem ao país (talvez o mais evidente ponto comum entre os adversários do jogo que ocorreu no dia 29 de novembro), mesmo com uma ofensiva sangrenta por parte do governo contra os manifestantes.
Essa mesma partida ocorreu em 1998 (o jogo da paz), em um cenário menos belicoso que o atual, e a vitória iraniana sobre os EUA foi comemorada como se tivessem ganhado a Copa. O jogo de 2022 foi favorável aos EUA, mas antes da partida ficava clara a animosidade cultuada ao longo do tempo, principalmente entre os atores políticos.
Dias antes do jogo, os EUA retiraram da bandeira do Irã um símbolo que remete a Alá, sob a justificativa de apoio às mulheres iranianas. O governo iraniano considerou uma ofensa e recorreu à FIFA para punir o rival, chegando a pedir que os EUA fossem banidos da Copa do Mundo, o que não foi atendido pela federação.
Entre os jogadores, o clima foi mais amistoso que o esperado. Nas arquibancadas, todavia, os torcedores se sentiam inseguros com a suspeita de espiões e integrantes da temida Guarda Republicana Iraniana infiltrados entre eles
O resultado do jogo e saída das oitavas de final da Copa impediram o governo de comemorar a vitória da luta entre o bem e o mal, nas ruas do Irã, e tentar, assim, enfraquecer a revolta popular contra os mulás, com o apelo nacionalista que isso implicava. O desfecho foi comemorado com buzinaços nas ruas de algumas cidades do país, pelos grupos insatisfeitos com o regime opressor a que estão submetidos.
De outro lado, repetindo o que ocorreu em 2018, a Sérvia e a Suíça se enfrentaram em um novo embate. Apesar de os dois países não terem grandes tensões comuns, a Suíça tem entre seus jogadores descendentes diretos de povos que enfrentaram conflitos sangrentos com os sérvios, ao longo da década de 1990, o que levou à desintegração da antiga Iugoslávia. Entre eles, os kosovares, de origem albanesa, que foram alvos da violência do líder sérvio, Slobodan Milosevic.
Em 2018, os jogadores suíços Granit Xhaka e Sherdan Shaquru, de origem étnica albanesa do Kosovo, ao vencerem a Sérvia durante a Copa do Mundo, comemoram os gols com as mãos abertas, imitando a águia negra de duas cabeças, símbolo da bandeira da Albânia. O mesmo gesto foi repetido, na época, pelo capitão do time suíço.
Os jogadores foram investigados pela FIFA, a entidade reguladora do futebol, e condenados a multas de alguns milhares de euros cada um, mas não foram suspensos. Argumentaram que o ato foi apenas no calor da emoção, mas há uma mensagem mais complexa por trás desse gesto.
O sonho de Milosevic de formar “A grande Sérvia” esbarrava na resistência da enorme diversidade étnica, religiosa e linguística, em um país pequeno, com área aproximada à do estado de São Paulo. A independência das repúblicas e o reconhecimento dos novos estados pela ONU desencadeou sangrentas guerras entre 1992 a 1999.
Desses confrontos surgiram seis novos países (Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia do Norte) e duas regiões autônomas: Voivodina (húngaros) e o Kosovo (albaneses), pertencentes à Servia.
Desses confrontos surgiram seis novos países (Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia do Norte) e duas regiões autônomas: Voivodina (húngaros) e o Kosovo (albaneses), pertencentes à Servia.
Em 1999, quando a fúria de Milosevic voltou ao Kosovo, a OTAN atacou a Iugoslávia e levou ao fim da Guerra dos Bálcãs, mas nunca conseguiu eliminar os rancores entre os dois povos. A presença de tropas nas fronteiras kosovares é a demonstração dessa incapacidade de viverem de forma pacífica até os dias de hoje.
A declaração de independência do Kosovo, em 2008, não é reconhecida pela Sérvia, nem pela ONU (Rússia e China, membros permanentes no Conselho de Segurança, são contrários a essa independência e impedem a entrada do Kosovo na organização) ou pela União Europeia (a maior resistência é da Espanha, que enfrenta processos separatistas na Região Basca, na Catalunha e na Galícia). Mas a FIFA e o COI (jogos olímpicos) incluíram o território kosovar, nos eventos internacionais do esporte, desde 2016, contrariando a Sérvia: esta criou todos os obstáculos possíveis para evitar esse reconhecimento no atletismo mundial.
Todos os olhares se voltaram para a última partida entre as duas seleções. Entretanto, os jogadores, em campo, dessa vez, não repetiram o ato da Copa anterior, apesar de algumas tensões (como um cartão amarelo dado ao goleiro reserva sérvio, após um pênalti ser negado, protestar tocando as partes íntimas) no final e após o jogo. Mas nas arquibancadas uma expectadora (não estava claro a qual torcida pertencia) fez o mesmo gesto com as mãos, representando a águia negra, durante a partida. Foi escoltada para fora do estádio pelos seguranças. O gesto foi considerado uma provocação à Sérvia.
Com o final da fase de grupos e o início das oitavas de final, o embate entre o Marrocos e a Espanha revive a questão geopolítica do Saara Ocidental (o único país africano, ainda colonizado), ocupada pelos espanhóis entre 1904 a 1975. Com o final da Segunda Grande Guerra (1939-1945) e o processo de Descolonização Africana, o povo saharaui passou a reivindicar sua independência. Mas até hoje aguarda pela sua independência. A Espanha nunca realizou o referendo, determinado pela ONU, nos anos de 1970, com esse intuito.
Um documento elaborado pela Assembleia Geral da ONU, em 1975, reconheceu ligações do território com o Marrocos e a Mauritânia, mas não os direitos sobre os saharauis e sua terra, mas o rei marroquino, Hassan II, surpreendentemente, o interpretou à sua maneira e iniciou a ocupação, que foi ignorada pelos antigos colonizadores devido a questões internas mais urgentes, com a doença do seu líder e a criação de um novo governo.
Após morte do ditador Franco (1975), sigilosamente, a Espanha cedeu o controle administrativo do Saara Ocidental (onde se encontram as maiores minas de fosfato do mundo, grandes reservas de petróleo e gás e o grande potencial pesqueiro de suas águas costeiras) aos dois países africanos, em 1976.
Recentemente, o governo espanhol Pedro Sánchez, em carta ao Rei Mohammed VI, expressa o reconhecimento da soberania do Marrocos sobre o território ocupado. A manobra é uma forma de evitar as frequentes entradas de numerosos imigrantes em Ceuta e Melilla (territórios espanhóis na costa norte-africana) promovida pelos marroquinos como uma forma de puni-los pela histórica oposição a essa soberania.
Isso não chega a ser um problema em campo, mas pode expor o governo Sánchez na imprensa nacional e internacional e os problemas que enfrenta com o aumento da inflação, escassez de produtos com a invasão russa da Ucrânia e o crescimento acentuado do desemprego no país.
Há, ainda, uma possibilidade de a Inglaterra e a Argentina se enfrentarem em uma final, revivendo todos os cenários de disputa pelas Ilhas Malvinas/Falklands, reivindicada há séculos pelos argentinos e ingleses e que 40 anos atrás foi o estopim para a guerra entre os dois países.
Em 1986, na Copa do Mundo do México, os dois países se enfrentaram e os argentinos levaram para o campo todo os dissabores da guerra e da morte de 907 soldados durante o confronto.
Diego Maradona, considerado quase uma divindade no país vizinho e de grande engajamento político dentro e fora dos gramados durante sua vida, ao ser questionado pelos jornalistas sobre o seu primeiro e polêmico gol na partida, respondeu que o gol foi obra da “mão de Deus”. Maradona sabia que esta partida era uma repetição simbólica da Guerra das Malvinas, de 1982 e, entrando em campo, buscava vingança após a humilhação no conflito. Se o feito se repetir, dificilmente essa rivalidade será só pela vitória na Copa. Os rancores poderão ser levados, novamente, para o campo.
Os eventos do atletismo mundial sempre têm como objetivo unir povos através da simbologia de paz que o esporte alimenta. Povos do mundo inteiro se unem para torcer pelos seus representantes em eventos grandiosos e de rara comoção.
Mas as relações cada mais entrelaçadas entre as nações e muitas arestas construídas ao longo da história colocam alguns embates frente a frente com a força geopolítica que os envolve. A geopolítica não é descabida nem reservada a diplomatas engravatados e experientes.
O futebol pode ir além do simples enquadramento do campo. Esse esporte representa a sociedade como ela é, e isso o transforma, não raro, num campo de batalha pacífico para as nações, onde ser amado é mais importante que ser temido. Que vença o melhor; espero que seja o Brasil.