Era julho de 1944, nos Estados Unidos (EUA), ocorria a Conferência de Bretton Woods, na cidade homônima do Nordeste do país. O mundo ainda estava no cenário da Segunda Grande Guerra, mas a derrota iminente da Alemanha era aguardada, e novas rotas eram necessárias para a economia e sociedade globais.
Nesse ambiente ainda tenso da Grande Guerra, reuniram-se 730 delegados de 44 países (entre eles, o Brasil), com o objetivo de definir os contornos da nova arquitetura financeira internacional ao findar do conflito, intermediado pelo anfitrião.
John Keynes (norte-americano) e Harry Dexter White (britânico) são os protagonistas desse encontro, com propostas distintas: o primeiro defende a criação de uma moeda internacional, e o segundo defende a ideia de um sistema de padrão-ouro, em que todas as moedas estejam atreladas ao dólar. White sai vitorioso.
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A glória do dólar será mantida inalterada até o início dos anos de 1970. O cenário começa a se modificar após os sucessivos déficits externos da balança comercial dos EUA, com o aumento persistente da inflação; o grande acúmulo de dólares nos bancos centrais europeus e japoneses, assim como a redução das reservas de ouro norte-americanas explicam a alteração desse modelo de paridades fixas. Nixon, presidente dos Estados Unidos, suspende, de forma unilateral, temporariamente, a conversibilidade do dólar ouro, em 1971.
O primeiro choque do petróleo, em 1973, confirma a inviabilidade do modelo anterior com o agravamento do endividamento Internacional. O fracasso do sistema estabelecido em 1944 ocorre com a retomada definitiva das taxas de câmbio flutuantes, após a crise petrolífera. O sistema Bretton Woods entrou em colapso, e o ouro foi negociado livremente nos mercados mundiais.
Apesar da ruptura do modelo de paridade estabelecido no pós-guerra, o domínio do dólar permaneceu inabalável, com nenhuma moeda se colocando à frente da moeda estadunidense ao longo dos anos, nem mesmo o Euro ou o Iene, do Japão. Ao longo de todo esse período, os EUA usaram o poder monetário para controlar o mundo, muitas vezes com chantagens e coerção, deixando vulneráveis aqueles países que iam na contramão das políticas defendidas pelo Tio Sam.
Todavia, todo esse poder hegemônico do dólar pode estar com os dias contados. Talvez pela própria postura dos EUA em transformar seu poderio em uma contínua forma de subjugar os demais países, com sanções cada vez mais severas e bloqueio dos ativos internacionais daqueles que contrariam os status quo por eles defendido, como é o caso da Venezuela, Rússia, Irã, Afeganistão, Líbia etc.
O aumento da aplicação da Lei da Extraterritorialidade pelos Estados Unidos intensificou o temor dos países estrangeiros em relação ao país e à sua moeda. O simples fato da posse de dólares por uma empresa estrangeira pode torná-la imediatamente alvo de investigação, pois considera que há uma violação da lei americana.
Dessa forma a moeda dos EUA não é apenas uma ferramenta de dominação monetária, mas também uma alavanca legal de opressão, que amplia o risco à soberania de todos os agentes econômicos. Um preço alto, devido a essa interpretação legal pelos estadunidenses, já foi pago por muitas empresas francesas, chinesas e iranianas.
Assim, aos poucos, largos passos estão sendo dados na direção contrária aos interesses do líder do Ocidente. Várias nações asiáticas e africanas buscam uma alternativa à onipotência do dólar. Mais de 25 países já negociam com a China utilizando o yuan, a moeda chinesa. Rússia e Índia, duas economias emergentes gigantescas, já realizaram as primeiras trocas comerciais com moedas distintas do dólar.
O governante da Arábia saudita, tradicional aliado dos EUA, através do ministro da economia, expôs claramente que está aberto a comercializar o petróleo em outras moedas, abdicando da exclusividade dos petrodólares, uma posição que se repetiu com os Emirados Árabes Unidos e outras nações do Oriente Médio.
Nesse cenário construído nos últimos anos, mas fortalecido desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, novas políticas monetárias são, de forma recorrente, divulgadas. E o Brasil, sob o governo Lula, anuncia mudanças nas suas trocas comerciais. Na sua visita à China na última semana, em um evento primoroso realizado pela diplomacia chinesa, o líder brasileiro, no seu discurso, reafirmou o acordo entre ambos de dispensar a moeda dos EUA nos câmbios entre os dois países.
Isso permitirá que a China, o principal rival do domínio econômico dos EUA, e o Brasil, a maior economia da América Latina, conduzam suas transações comerciais e financeiras diretamente, trocando yuan por reais e vice-versa, em vez de usar o dólar. A China, a segunda maior economia do mundo, tem acordos semelhantes com a Rússia, o Paquistão e vários outros países.
Há toda uma tendência em tirar o dólar do trono que ocupa desde os anos 30 do século passado. Não significa que a tarefa seja fácil. Tudo isso demanda tempo e um pouco de sorte a favor dos esteios antidólar. Mas não há na história nenhuma moeda que tenha perdurado para sempre como o bastião da dominação econômica. Outras, no passado, como a libra esterlina, foram robustas até que deixaram de ser. Isso também pode ocorrer com o dólar.
Como pano de fundo de todo esse contexto que o mundo vivencia, estão as disputas externas entre EUA e China, que se agravam cada vez mais. A possibilidade de perda da supremacia econômica mundial para os chineses (considerada inevitável por um número crescente de analistas geopolíticos em curto espaço de tempo) incomoda e tira o sono dos líderes ocidentais, especialmente, dos norte-americanos. Barrar os avanços chineses tornou-se uma prerrogativa das lideranças dos EUA, seja entre republicanos, seja entre democratas.
As estratégias incluem, entre outras coisas, impedir que fortaleça a política visionária de Xi Jinping, líder máximo chinês, através do programa Belt and Road Iniciative (BRI), lançada há quase uma década, que prevê a instalação de uma fabulosa infraestrutura para trocas comerciais terrestres e marítimas entre a China e Ocidente, como na antiga Rota da Seda.
Entretanto, a China não demonstra tanta pressa na internacionalização do yuan. O país busca, ao que tudo indica, uma maior autonomia estratégica e diversificação no plano monetário.
Enquanto isso, os ideais do American First, propagados pelo ex-presidente Trump, ironicamente, podem se concretizar e a “América” voltar-se para ela, perdendo a hegemonia de décadas, tanto do ponto de vista geopolítico como monetário.
É evidente que isso não ocorrerá de forma sutil. Os norte-americanos vão reagir com ferocidade para evitar que tal cenário se construa de fato. Compreender como uma moeda se torna o símbolo soberano das reservas globais e como perde esse posto pode ser um passo. A primazia do dólar pode não ser eterna. E isso não representará apenas uma época de mudanças, mas certamente uma mudança de época. Agora, é ficar à espreita!