Por ter roubado o fogo dos deuses e dado aos homens, Zeus condenou Prometeu a permanecer acorrentado, tendo o fígado e os ossos carcomidos diariamente por um águia, isso durante 30 séculos. Um dia, o deus Hermes foi até Prometeu e lhe disse que Zeus o havia mandado perguntar se ele preferia ser imortal e permanecer acorrentado ou, então, ser solto e se tornar mortal. Prometeu, também chamado o Pai dos Homens, decidiu pela liberdade e, com isto, tornou a todos nós mortais. Eis um belo mito a tentar explicar nossa incompreensível mortalidade, mas, percebamos que já nele, a morte é resultado de um castigo, nunca de um processo natural, que inclui nascimento e morte.
Se para os gregos, quase sem recursos de saúde, a finitude era percebida como castigo, imagina para o ser humano moderno que viu, há não mais que quatro gerações, uma diminuição vertiginosa das doenças que levam a óbito. Antes as pessoas conseguiam se preparar para o próprio fim acompanhando a passagem dos seus amigos e parentes. Geralmente a morte acontecia dentro de casa e era quase uma cerimônia pública, na qual o próprio enfermo, além de auxiliar nos preparativos de seu derradeiro momento, também recebia a todos os que quisessem ir ali se despedir, fossem conhecidos ou não. Hoje em dia, além da diminuição no número de óbitos, a morte foi levada para dentro dos hospitais e isto fez com que houvesse uma alteração na nossa percepção sobre a nossa própria finitude.
Por não convivermos mais com a morte rotineiramente como conviviam nossos antepassados, ela deixou de ser percebida como parte inerente da vida e, passou a ser vista como um castigo, que tem apenas a finalidade caprichosa de pôr termo a uma existência que, não fosse a doença, jamais deveria se extinguir. Neste contexto, os avanços tecnológicos, que foram concebidos para possibilitar o florescimento humano, podem acabar por se transformar em meios pelos quais passamos a negar a nossa própria finitude.
A ideia recorrente de que nós não deveríamos morrer e que nossa mortalidade é um castigo, faz com que muitas vezes assistamos na medicina um adiamento desmedido do momento da morte do enfermo por meio do uso de aparato tecnológico. Nem sempre, mas as vezes, o prolongamento desmedido da vida de um paciente pode desconsiderar que nós seres humanos não somos formados unicamente por um corpo biológico fadado à extinção, mas também temos uma porção simbólica, que não deve ser sacrificada em nome de um desejo infantil de imortalidade.
A escolha por tratamento de saúde curativo deve ser muito bem avaliada, tanto pelo paciente quanto pela equipe de saúde, notadamente quando o enfermo já entrou em processo de morte, aqui concebido como aquele momento em que não há mais como interromper a evolução da doença, não havendo mais o que fazer senão oferecer tratamento paliativo. A equipe deve estar atenta que oferecer recursos terapêuticos que não se justificam diante da realidade do paciente em processo de terminalidade da vida, viola o princípio da não maleficência, que é aquele que diz que o médico não deve infligir danos intencionalmente no paciente; e, sem dúvida, a indicação de tratamento de saúde cujo benefício não justifica o prejuízo é caso de causa de dano intencional em paciente fora de possibilidade terapêutica.
Talvez, aceitando a ideia da nossa inalterável mortalidade, fôssemos capazes de avaliar melhor quando é chegado o momento de parar obstinadamente de querer tratar uma doença incurável, seja nossa, seja daqueles que amamos. Quem sabe se fizermos as pazes com nossa finitude não saberíamos, diante de uma decisão em saúde, saber escolher entre persistir com um tratamento curativo, muitas vezes repleto de efeitos colaterais e sem muito bom prognóstico; ou parar com ele e iniciar um tratamento paliativo, apenas para alívio da dor física e do sofrimento psíquico.
A vida é um sopro e quando menos esperamos já é hora de partir! A morte não é castigo, ela é resultado final de uma vida finita. Diante de tal realidade não seria mais urgente nos conscientizarmos de que devemos aproveitar mesmo é o que acontece no meio do caminho, no cotidiano, nas risadas bobas e naquilo que alegra nosso coração? Não precisamos, no final da vida, castigar (isso sim é castigo!) nosso corpo frágil a experimentar um processo doloroso de morte porque não aceitamos nossa existência limitada no tempo.