Caro leitor, imagine o seguinte cenário: um personagem desconhecido é eleito presidente por um novo partido. Por desventuras do destino, essa figura precisa enfrentar a maior crise sanitária e econômica de uma geração. Imagine ainda que parte desse governo seja composto por indivíduos que acreditam em teorias pouco críveis, como a que sustenta que os voos comerciais espalham drogas para “dopar” a população ou mesmo para espalhar doenças (os rastros deixados pelas aeronaves no céu seriam a prova).
Essa é a realidade... na Itália. O primeiro-ministro Giuseppe Conte elegeu-se com forte discurso contra a política tradicional. Ele não havia ocupado cargo público algum, até se eleger pelo também recém-criado Movimento 5 Estrelas.
O defensor da tal teoria citada no primeiro parágrafo é o senador Vicenzo Santangelo, que foi Secretário de Estado de Conte. A explicação técnica para o fenômeno – ou seja, que o rastro dos aviões nada mais é do que vapor das turbinas condensado em cristais de gelo – pouco sensibilizou o responsável pela articulação política do governo. Essa e outras histórias bizarras estão no livro Engenheiros do Caos, do jornalista italiano Giuliano da Empoli. Uma das conclusões do autor é que, para um governo populista, a ciência não passa de um acessório rocambolesco, que não resiste à opinião de algum guru isento da influência da mídia golpista.
Muito longe de ser a exceção, o obscurantismo de Vicenzo está disseminado na Administração Conte e resultou em uma grande resistência por parte das autoridades italianas contra o isolamento social. O preço foi alto: 32 mil mortos e mais de 223 mil casos – quinto país com maior número. O Brasil está logo atrás da Itália (talvez até a publicação desse artigo já tenha superado). A disputa sinistra pela quinta posição no ranking de países com mais infectados coloca pressão na Administração Bolsonaro, mas está longe de ser a única preocupação do presidente brasileiro.
A saída barulhenta de Sergio Moro, a dificuldade de manter um ministro racional na pasta da saúde e a relação conturbada entre os grupos que circundam o presidente criaram crises que têm em comum a gestação no terceiro andar do Palácio do Planalto. É o próprio Bolsonaro quem vai colocando lenha no fogo do caldeirão no qual vem sendo cozido. Quanto maior a temperatura fervura, maior a possibilidade de um impedimento. É nesse contexto que o presidente passou a negociar com os partidos do centro.
Bolsonaro precisa de 170 dos 513 votos na Câmara dos Deputados para evitar um processo de impeachment. Os partidos do centro são mais que suficientes para fornecerem essa quantidade de votos. O preço do apoio no Congresso será proporcional à popularidade do presidente. Ainda assim, a história recente mostra que nem todos os cargos e verbas da República seguram um (ou uma) presidente, caso o seu apoio popular esteja muito baixo e a economia em frangalhos.
Nesse sentido, um bom termômetro da fervura de Bolsonaro são as declarações dos líderes dos partidos de centro. Por enquanto, o que se vê é um discurso alinhado dentro desse grupo pedindo união nacional contra o inimigo comum, que é o coronavírus. Ou seja, no momento, a temperatura continua baixa.
Na Itália a realidade se impôs. Giuseppe Conte desistiu de sua ideia de negar o isolamento social e nunca nem chegou a defender com afinco a cloroquina. Por aqui, ainda predomina crenças com pouca fundamentação científica, o que tende a custar ainda mais vidas e talvez um mandato presidencial. Infelizmente, caro leitor, não precisa mais imaginar.