Com o tempo, a história do dia 8 de janeiro de 2023 vai sendo esclarecida. Muitos fatos virão a público aos poucos, em especial os que se referem ao envolvimento das forças de segurança na tentativa de intentona bolsonarista. Uma coisa é certa: Eduardo Bolsonaro estava completamente errado quando imaginou que um cabo e um soldado poderiam fechar o Supremo Tribunal Federal (STF). Hoje, sabe-se que a tentativa do dia 8 contou com o apoio de patentes bem mais altas e ainda assim as instituições democráticas resistiram, mas somente porque as condições objetivas para um golpe não estavam postas.
Essas condições podem variar em importância dependendo da ocasião, mas necessariamente passam por apoio internacional à ruptura, adesão de parte relevante da população aos anseios golpistas, fragilidade das instituições formais (como Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal), apoio da sociedade civil (empresariado, sindicatos, associações e imprensa, por exemplo) e a participação das forças de segurança.
Essas condições existiam fartamente em 1964, quando João Goulart foi deposto. Foi necessário um processo de redemocratização longo para o encerramento dos 21 anos de ditadura militar e a refundação da república com a Constituição de 1988. Esse reestabelecimento da ordem democrática passou pela anistia em 1979 dos crimes cometidos por militares durante o período.
Não é exagero dizer que a refundação da república teve como custo a impunidade de torturadores e assassinos. Novamente, agora no contexto pós-Bolsonaro, já se defendia que a “pacificação” só ocorreria com nova anistia aos maus militares que pregaram contra a democracia nos últimos anos. A nomeação de José Múcio Monteiro indicava realmente que o presidente eleito poderia seguir por esse caminho. Mas o 8 de janeiro parece ter mudado tudo.
O processo de retirada de militares de cargos civis parece estar só no começo. O Tribunal de Contas da União constatou que 6.157 oficiais ocuparam cargos comissionados. É bem provável que boa parte deles sejam mandados de volta para a caserna bem mais rápido por causa da tentativa frustrada de golpe. A limpeza também chegou no alto comando das forças após inúmeras demonstrações de insubordinação do generalato serem aturadas pelo novo governo.
A exoneração do general Júlio Cesar de Arruda ocorre apenas algumas horas depois de seu sucessor, o general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, discursar em cerimônia de homenagem a militares mortos no Haiti. O discurso de Paiva foi na quarta-feira (18) e a demissão de Arruda foi no sábado (21). Evidente que não foi coincidência.
É bem provável que a troca do general já estivesse em preparação desde os primeiros dias que sucederam a tentativa de golpe, mas prevaleceu a avaliação de que a troca imediata no comando poderia gerar mais tensões. Esse receio é uma nítida cicatriz deixada pelo processo de redemocratização: a impunidade com os maus militares do passado reflete na petulância dos golpistas atuais.
Na última semana, o presidente Lula, em entrevista à jornalista Natuza Nery, da GloboNews, garantiu que "todos que participaram do ato golpista serão punidos. Todos. Não importa a patente, não importa a força que ele participe". Isso é mínimo. No entanto, do ponto de vista estrutural, certos resquícios do passado precisam ser reavaliados. Talvez o primeiro deles seja a existência de uma Justiça Militar. Por que militares golpistas não podem ser julgados como qualquer um? As dos cortes civis não estão a altura dos fardados?
Caso erros do passado não sejam devidamente expurgados, baboseiras do tipo “cabo e soldado fechando STF” começam a fazer sentido não só para desmiolados. A punição precisa ser exemplar e é necessário repensar a relação da sociedade brasileira com suas forças.