Já é suficientemente esdrúxulo um candidato à presidência crer ter recebido de Deus a incumbência de gerir um país. Agora imagine um candidato que acredita que seu falecido cachorro lhe teria dado a missão. Não precisa mais imaginar: o tal Javier Milei saiu das primárias argentinas com chances reais de virar o mandatário do principal parceiro econômico do Brasil na América do Sul.
Trata-se de mais um exemplo de que o recorrente cansaço com a classe política pode provocar decisões coletivas insanas. É o típico caso do discurso do outsider sem noção que ninguém dava importância até ganhar uma eleição. A diferença é que Milei nunca se candidatou a nada até virar deputado federal já depois dos 50. Fora isso, a proximidade ideológica de Milei com o discurso adotado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro tem tudo para, se ganhar mesmo as eleições, ser mais um teste de fogo para a política externa do governo Lula.
O presidente brasileiro sempre valorizou uma relação próxima com a Argentina. Além de ser um parceiro comercial importante para produtos industriais brasileiros, não é possível o Brasil ser visto como um ator relevante internacionalmente sem exercer liderança na América Latina. Com concepções de mundo muito diferentes, Milei e Lula tenderiam a ter um diálogo, no mínimo, curioso. O candidato anarcoliberal vocifera seu ódio ao Estado (ele já disse que teria apenas oito ministérios), enquanto Lula acabou de lançar seu programa de aceleração do crescimento, com uma boa parte dos recursos vindos de empresas públicas.
Mais que isso, enquanto Lula briga com seu independente Banco Central para baixar a taxa de juros, Milei tem como uma de suas principais propostas dolarizar de vez a economia argentina, abrindo mão da política monetária de seu país. Evidentemente que mudanças dessa magnitude podem afetar a delicada relação com o Brasil. Para começar, a escassez de dólares na Argentina faz com que seja virtualmente impossível tirar recursos de lá. Dessa forma, todo o dinheiro que companhias brasileiras geram com suas operações na Argentina fica lá. É comum ver empresas comprando imóveis ou investindo em áreas que nada tem a ver com a sua atividade, simplesmente porque não têm o que fazer com o dinheiro.
Outro ponto importante é a dificuldade de conseguir insumos importados para se operar: todas as vezes que se importa bens, é preciso que dólares saiam para que o pagamento seja efetuado. A escassez de moeda novamente faz com que as autoridades aduaneiras argentinas soltem a conta-gotas as licenças para importação. As empresas brasileiras perdem duas vezes: se estão na Argentina, têm dificuldade para operar nessa condição; se fornecem insumos para lá, ficam em posição muito difícil para conseguirem efetuar as vendas com regularidade.
O apoio governamental nessas situações é fundamental. A China, por exemplo, foi ao socorro da Argentina no final de julho, que a permitiu pagar a parcela da dívida contraída juntamente ao Fundo Monetário Internacional (FMI) sem usar suas reduzidas reservas internacionais. A boa vontade chinesa não é por acaso: o país asiático vem ocupando o espaço do Brasil como fornecedor de bens industriais. Para ter uma ideia, em 2003, o Brasil tinha quase 34% das importações de produtos manufaturados; em 2022 não chega aos 20%. Esse espaço foi majoritariamente ocupado pelos chineses.
O mais interessante é que o discurso extremista contra a China talvez seja a principal marca das propostas para a política externa de Milei. Já chegou a dizer que pode congelar o comércio com os chineses (talvez só o falecido cachorro dele saiba o que isso significa). Da mesma forma – por considerar o Brasil “comunista” – não se pode esperar nenhuma facilidade com o maior parceiro comercial argentino por parte de Milei.
O nome do cachorro de Milei era Conan. Como tudo é possível no mundo surreal da política, talvez Conan mude de ideia até as eleições definitivas em 22 de outubro e perceba que é uma péssima ideia colocar seu antigo tutor como presidente. Quem sabe, parte dos 30% dos eleitores argentinos não mudem de ideia também?