Ainda bem menina, quando morava no Bairro Calafate, Oeste da capital, Lúcia César dos Santos acalentava o sonho de ser uma versão feminina de Monteiro Lobato (1882-1948), autor de Sítio do Pica-pau Amarelo e das aventuras de Pedrinho, Narizinho, da boneca Emília e companhia. Agora, aos 83 anos e vivendo em Venda Nova, ela gostaria mesmo de se tornar comentarista política, e confessa: “Se política fosse comida, queria com farinha”.
Bem-humorada, a matriarca de cinco filhas, cinco netos e cinco bisnetos sempre reservou um tempo para se dedicar à cultura e a observar a cidade onde nasceu. Transformou-se assim em uma das testemunhas dessa história. “BH cresceu muito nas últimas décadas. Ao me casar, aos 17 anos, e vir para Venda Nova, o silêncio era tanto que dava para ouvir baratas passeando.
”Orgulhosa de ter conhecido o beato Padre Eustáquio (1902-1943) e “beijado” a mão do então prefeito da capital, Juscelino Kubitschek (1902-1976), a leitora voraz de jornais destaca a abertura da Avenida Antônio Carlos, da Lagoinha à Pampulha, como obra pública da gestão JK que abriu os horizontes de BH rumo ao Norte – tendência de crescimento que, agregada atualmente a outras regiões e municípios, ganhou o nome de Vetor Norte – e começou a levar desenvolvimento e povoamento a uma área na época quase inóspita.
“O progresso traz o bem e o mal. Houve crescimento descontrolado unindo a região metropolitana e ações mal planejadas causadoras de problemas urbanos”, avalia a senhora, que mantém o costume antigo da região, de chamar o Centro da capital de “Belo Horizonte”, como se fosse outra cidade.
Na prática, as observações de Lúcia fazem todo sentido dentro da realidade atestada por urbanistas e gestores: BH, com seus 330,9 quilômetros quadrados, não tem mais para onde crescer. Essa situação, por sinal, já era evidente para Kubitschek, prefeito entre 1940 e 1945, tendo em vista a barreira natural, nas regiões Sul e Leste, criada pela Serra do Curral. “Realmente, os espaços foram ocupados. Antes, isso ocorreu dentro dos limites da Avenida do Contorno e, depois, em todo o perímetro urbano”, diz a presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil/Minas Gerais (IAB/MG), Rose Guedes.
Mudanças acompanhadas pelo Estado de Minas durante seus 90 anos de circulação, completados em 7 de março, como mostra a foto no alto desta página.
Centralidades são tendência
Representante do IAB/MG no Conselho Deliberativo de Desenvolvimento da Região Metropolitana de BH, o arquiteto e urbanista José Abílio Belo Pereira explica que Juscelino, “homem visionário”, já pensava na duplicação da Antônio Carlos, o que só ocorreu em meados da década passada. No século 21, acrescenta, os gestores públicos buscam novas “centralidades” ou núcleos para investimento, geração de renda e moradia, servidas por sistema viário.
Se agora o Vetor Norte é a bola da vez, projetos dirigidos já contemplaram outras regiões, em meados do século passado, começando pelo trecho próximo ao município vizinho de Contagem, no chamado eixo Oeste-Centro-Leste. O conselheiro destaca que, ao longo do tempo, todo o sistema viário convergiu para a Região Central, o que foi “quebrado” com o Plano Metropolitano, a fim de melhorar a mobilidade.
Ressaltando que na Grande BH há cerca de 5 milhões de habitantes, com metade na vizinhança da capital, ele faz questão de lembrar que, dos 34 municípios, 20 têm trilhos de trens. “Se houvesse vontade política, esse potencial poderia ser aproveitado no transporte público, com benefício para cerca de 4 milhões de passageiros.”
Diretora-geral da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de BH (braço executivo do Conselho Deliberativo Metropolitano), a engenheira Flávia Mourão reforça a constatação sobre o esgotamento do território da capital “Não há, em BH, terreno para grandes empreendimentos, áreas para receber investimentos públicos”, observa, reiterando que a alternativa está nas novas centralidades.
Diante desse quadro, garante não ser mais possível pensar apenas nos problemas urbanos belo-horizontinos, como mobilidade e habitação, além do desenvolvimento econômico, sem levar em consideração a região metropolitana em sua totalidade. A história por trás da ‘marcha para o Norte’ Para entender melhor toda a história, é preciso voltar à década de 1940, quando, devido à maior oferta de terras ao Norte da capital e aos preços acessíveis das áreas, criou-se uma atração para grande número de moradores, em especial a camada mais pobre da população.
A especulação imobiliária explodiria 30 anos depois, tanto que o distrito de Justinópolis, em Ribeirão das Neves, hoje com 103 bairros e cerca de 190 mil habitantes, elevou o município ao patamar daquele com o maior crescimento demográfico do Brasil na década de 1970. Com o deslocamento da população mais pobre, o número de habitantes explodiu em cidades vizinhas como Santa Luzia, Sabará, Vespasiano e Contagem. Na década de 1960, o chamado eixo Oeste-Centro-Leste recebeu maiores investimento públicos, tanto que a única linha do metrô contemplou o trecho Eldorado (Contagem)-Vilarinho (Venda Nova).
Expansão rumo ao Norte
Já nos anos 2000, favorecidos pela Linha Verde, que liga a Avenida Cristiano Machado, em BH, ao aeroporto internacional de Confins, houve novos tipos de loteamentos, com oferta para pessoas de maior poder aquisitivo, em Lagoa Santa e Jaboticatubas. Flávia Mourão explica que a duplicação da Avenida Antônio Carlos foi outro fator importante para o Vetor Norte. “Para a região foram pensados empreendimentos que não causassem poluição, como ocorreu no início da industrialização de Contagem.”
Ressaltando que a Associação dos Desenvolvedores do Vetor Norte (AVNorte) é “apartidária”, o diretor-executivo da entidade, empresário Astrid Dias, explica que a região (composta, neste grupo específico, por 12 municípios, incluindo Belo Horizonte, a partir de Venda Nova), é estratégica para Minas, principalmente por abrigar o aeroporto internacional, em Confins.
“Ele é o principal aparelho para o desenvolvimento e exportações”, afirma. Na avaliação do diretor-executivo, o Vetor Norte oferece “terra e oportunidade” para quem quiser investir, tanto recursos públicos quanto privados. Para ele, nesse conceito de desenvolvimento, que cria áreas nas quais as pessoas podem “morar, trabalhar e se divertir”, são fundamentais dois pilares: uso de tecnologia e educação. Vale voltar, portanto, à conversa com Lúcia César dos Santos, a moradora de Venda Nova, testemunha de muitas décadas na região. “Um dia, na década de 1950, voltando de Belo Horizonte (do Centro da capital) para casa, passei e vi uma placa anunciando a futura construção do câmpus da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Hoje é aquela imensidão, já é o futuro. E fico feliz em dizer que uma das minhas filhas, agora com 62 anos, se formou em belas-artes e em história lá”, diz a ex-agitadora cultural, que se declara “apaixonada por Venda Nova” e continua de olho em tudo o que acontece. Em BH e no mundo.