Jornal Estado de Minas

Os novos formatos da família mineira

Por onde passam, seja na praça da Assembleia Legislativa de Minas ou numa simples ida ao supermercado, os gêmeos Valentim e Elena, de apenas 2 meses e meio, tornam-se a principal atração do lugar. Não é por menos. Ele exibe jardineira xadrez, com bolsão na frente e enfeite nos sapatinhos, combinando com o restante da roupa. Ela ostenta enorme laço de fita na cabeça, além do vestido curto, deixando transparecer a calcinha de renda guipir, na cor branca. Os looks de ambos são em tom de azul.


– Que lindos os dois bebês! São gêmeos? Quem é a mãe dessas fofuras? Por saírem sempre juntas, carregando seus bebês no colo ou no slim, a psicopedagoga Alessandra Lopes, de 33 anos, e a historiadora Renata Lopes, de 31, revezam-se para atender ao interrogatório de praxe. “Nós duas somos as mães!”, diz Alessandra, que já tem a resposta na ponta da língua, previamente combinada com sua mulher, Renata, juntas há seis anos e casadas no papel, com registro civil em cartório.

Dependendo do nível de paciência e do estado de exaustão, em função dos cuidados intensivos exigidos pelos bebês, o casal homoafetivo feminino poderá dar meia volta e ir embora da pracinha ou, se preferir, detalhar como funciona o processo de inseminação artificial, que permite a duas mulheres casadas gerarem os próprios filhos. “Com relação à gravidez, eu entrei com os óvulos e a barriga; e Renata com o amor e os cuidados com as crianças. Já o sêmen, anônimo, veio do banco de doadores”, completa.


Sob a proteção da mamãe Alessandra e da mamãe Rê, os gêmeos Valentim e Elena vão crescer e se desenvolver dentro dos novíssimos arranjos familiares já existentes em Minas e no Brasil, que acompanham a evolução nos costumes registrada ao longo de 90 anos do jornal Estado de Minas.
À tradicional família mineira, formada por pai, mãe e filhos, são incorporados os arranjos contemporâneos, compostos por casais no segundo ou terceiro casamento, com laços homoafetivos e até de pessoas casadas, mas vivendo em casas separadas.

Um dos primeiros a conseguir casar duas mulheres no país, o advogado Rodrigo da Cunha, presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Família (IBDFam), defende a tese de que a família é uma invenção cultural do homem, e não da natureza. “Como tal, ela vai se adaptando aos novos tempos, com a quebra do monopólio dos relacionamentos heteroafetivos”, acredita.

Isabel, de 10 anos, é a caçula de Luis Laborne, fruto do segundo casamento - Foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press
Sempre na vanguarda brasileira, o IBDFam foi um dos primeiros a oficializar o registro da união entre duas mulheres no papel, assim que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união entre pessoas de mesmo sexo como entidade familiar, em maio de 2011. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução 175, que regulamentou o procedimento. “Quando chegamos ao cartório da Rua São Paulo, o juiz de paz se negou a lavrar o casamento civil, alegando estar impedido por sua moral religiosa.

Em Minas Gerais, a Igreja ainda exerce muita influência sobre as instituições, mas, no fim, exigimos a presença de outro representante do cartório, que efetivou o casamento”, conta o advogado.
Na época, apesar de ter saído a decisão recente do STF, faltava obter autorização judicial para “consumar” o casamento civil nos cartórios em Minas.

Esse foi um dos primeiros casais a fazer parte das últimas Estatísticas do Registro Civil do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que, em 2016, somou 393 casamentos entre pessoas do mesmo sexo. O número é ligeiramente maior que o de 2015, quando Minas registrou 378 casos, 14% a mais em relação ao de 2014 (331) e 80,8% maior que o de 2013 (209). Em todo o país, foram 5.354 casos no último levantamento, em 2016, que registrou queda de 4,6% em relação ao ano anterior, com 5.614 casamentos similares – quantidade 15,7% maior do que a de 2014 e 51,7% acima da de 2013.

"Marido com peitos"

Nos dias de hoje, além de oficializar legalmente sua união, os casais homoafetivos podem escolher entre adotar filhos ou gerar descendentes com a ajuda de avançados mecanismos de reprodução assistida, desenvolvidos pela ciência. Apenas no Instituto Brasileiro de Reprodução Assistida (Ibrra), em Belo Horizonte, 27 casais gays concluíram o processo de inseminação artificial no ano passado, o equivalente a 15% do movimento total da clínica.
“Isso nem é mais novidade para nós. Agora, a maior demanda na clínica é por fazer a orientação genética do embrião, cercando a possibilidade de o filho herdar doenças como diabetes, pressão alta e todos os tipos de câncer”, observa o médico geneticista Bruno Scheffer.


No caso de Alessandra e de Renata, das quais ambos os nomes constam na certidão de nascimento dos gêmeos, as duas foram juntas à clínica, no momento de decidir o perfil do doador do banco de sêmen a ser escolhido. “Preferimos a descrição de um homem saudável, que desse preferência para a área de humanas e que gostasse de animais.

Em relação à cor da pele, fiz questão de escolher um doador que mais se aproximasse da aparência da minha esposa, mas parece que minha genética prevaleceu. Agora, conto com os banhos de sol para tornar Valentim mais moreninho”, brinca Alessandra. Segundo ela, o temperamento da espevitada Elena assemelha-se ao de Renata. “Nunca pensei em gerar filhos, mas concordei em sonhar junto com minha esposa, que sempre teve essa vontade. Nossa ideia era adotar o segundo filho, mas daí vieram os gêmeos”, explica Renata, que optou por adiar os estudos de mestrado em história.

Ela decidiu dedicar este ano a cuidar dos bebês, permanecendo mais tempo na casa onde moram, na cidade de Nova Serrana. Já Alessandra, responsável pela amamentação dos dois, voltará a dar aulas assim que acabar o período de licença-maternidade.
“Costumo brincar que sou um marido com peitos. A Renata é quem tem mais jeito para fazer dormir, trocar fraldas e decidir as combinações de roupa. Se deixar comigo, dou conta do serviço, mas não garanto a qualidade”, admite. Com Valentim dormindo no colo, enquanto Elena se debate nos braços de Alessandra, mamãe Rê concorda com a parceira: “Se deixar, ela mistura xadrez com blusa de bolinhas, vira um look tipo o Agostinho (personagem da série A grande família)”.

Renata e Alessandra conseguiram, sem dificuldade, registrar os filhos com os nomes das duas como mães - Foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press

Tom pejorativo

Nos primórdios do jornal Estado de Minas, nos anos 1930, e, portanto, no início do século passado, a maior parcela dos casamentos ocorria nos altares das igrejas católicas, onde geralmente era celebrada a união entre um homem de fraque e cartola com uma mulher de véu e grinalda, que deveriam ser felizes para sempre. É o que se pode presumir diante da falta de estatísticas confiáveis do registro civil naqueles tempos. Somente a partir da década de 1970, o IBGE passou a contabilizar o número de casamentos e a idade dos noivos que subiram ao altar. O interesse maior da época era investigar a alta taxa da natalidade brasileira e a preocupante mortalidade dos fetos no nascimento.

O Brasil teve 1.095.535 casamentos em 2016, segundo o IBGE, uma queda de 3,7% em relação ao ano anterior - Foto: Ilustração de Soraia Piva
O percentual de separações no país passa a ser quantificado pelo IBGE nos últimos 40 anos, com a aprovação da Lei do Divórcio, de 1977, bem como entram para as estatísticas oficiais aqueles casais brasileiros que “juntam os panos”, vivendo sob o mesmo teto, a denominada união estável de duas pessoas, sejam ou não héteros. Por fim, a partir de 2011, com autorização das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, os quadros do IBGE passam a incluir casamentos entre cônjuges de mesmo sexo. Assim, as estatísticas mais recentes, de 2016, mostram pela primeira vez no Brasil redução no total de casamentos registrados, de 3,7%. Naquele mesmo ano, o número de divórcios no país aumentou 4,7%.

Antigamente, a sociedade brasileira demonstrava enorme preconceito em relação a mulheres que tomavam a decisão de pedir o divórcio ou separação dos maridos, denominadas de desquitadas, na maior parte das vezes em tom pejorativo.
Atualmente, a sociedade já incorporou o crescente número de divórcios no país. Segundo o IBGE, três em cada 10 casamentos no Brasil acabam em separação, segundo levantamento feito pelo instituto quando a Lei do Divórcio completou 40 anos, em 2017.

Arranjos diferentes

“Não sei determinar direito qual é a natureza do meu relacionamento atual”, brinca o oftalmologista Luis Laborne Tavares, morador do Bairro Cidade Jardim. Divorciado da primeira mulher, com quem tem dois filhos adultos, ele se casou pela segunda vez com a bancária Carina, que já era mãe de um filho adolescente. O novo casal gerou a caçulinha dos três arranjos familiares, a estudante Isabel, de 10 anos. O médico e a mulher ficaram separados por um tempo e decidiram retomar a relação este ano, mas continuar vivendo em casas diferentes.

“A mãe mora a dois quarteirões daqui. Todos os dias ela leva Isabel para a escola de manhã e eu pego de volta, trazendo-a para minha casa. Ela tem quartos ‘de menina’ montados em ambas as casas”, diz Tavares. Já Isabel considera “ótimo” poder variar de casa quando quiser. “Moro com os dois. Posso vir a pé para a casa do meu pai”, diz a menina, que pediu a ele um quarto decorado na cor cinza.

Gente avançada


A partir de agora, as uniões entre parceiros do mesmo sexo já começam a ser vistas com “ares de naturalidade”, segundo o presidente do IBDFam, Rodrigo da Cunha.
“A sociedade mineira, historicamente mais fechada, tem sido mais tolerante. As famílias homoafetivas já convivem harmoniosamente com famílias mineiras tradicionais. Quem não tiver essa compreensão e tolerância estará condenado a ficar fora do mundo atual ou relegado a permanecer no bloco da saudade”, alfineta. É possível dizer que os mineiros estão até mais “avançados”, diante das uniões de homem com homem e de mulher com mulher, que subiram 4% de 2015 para 2016, enquanto no país o movimento foi de queda.


A grande polêmica da atualidade ultrapassou as uniões homoafetivas, voltando-se para o fenômeno das famílias poliafetivas, que, segundo o advogado Rodrigo da Cunha,  conta com cerca de 30 escrituras registradas em território brasileiro. “Em Minas, já é conhecida a história de uma família em que o marido deixou a primeira mulher, com quem tem um filho, e foi viver com outra, ganhando outro filho. Passado um tempo, a primeira mulher pediu para voltar. O marido e a atual esposa aceitaram o retorno da anterior. Agora, os três convivem na mesma casa, inclusive com todos os filhos”, conta.

Formou-se a família poliafetiva, que aceita sob o mesmo teto o marido, duas esposas e os filhos de ambas, devendo obediência a um único pai. “No Rio de Janeiro, três mulheres vivendo juntas, sem a presença de um homem na relação, conseguiram ser registradas no cartório como sendo uma família”, diz. “Não é a Justiça que inventa essas coisas, ela só vai nomeando o que começa a existir na sociedade. A geração jovem tem uma nova concepção de vida, mais livre e autêntica, sem tanto medo de encarar o próprio desejo, sem tanta culpa”, compara.

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OS TABUS
 
“Ao longo de quase 25 anos de história no jornal, não há como não destacar a evolução da sociedade, com reflexos também na medicina e na formação das novas famílias. Casais heterossexuais com óvulos doados, casais homossexuais com filhos, pais adotivos de duas ou mais crianças, mães e pais solteiros, mulheres sendo mães depois dos 60 anos. Eu mesma, cidadã de Belo Horizonte, fui mãe solteira e nunca sofri muito preconceito por isso, embora perceba o quanto ainda é possível a evolução do ser humano. BH cresceu, os moradores ampliaram seus horizontes e as famílias tornaram-se mais generosas. É tempo de aceitação, de libertação das amarras e do fim dos olhares assustados diante de assuntos como casamentos homoafetivos, bancos de sêmen ou coisas do tipo. E ainda há tanto para evoluir...”


Ellen Cristie,
subeditora do Portal Uai,
ex-repórter de Gerais

Famílias simultâneas

Outra novidade entre os arranjos familiares, que a jurisprudência começa a reconhecer no país, inclusive em Minas, são famílias paralelas ou simultâneas. A lei ainda qualifica essas ocorrências como concubinato, mas já existem julgamentos em Minas acatando a divisão da herança entre duas mulheres que conviveram durante a vida inteira com o mesmo homem, simultaneamente. Até a Constituição de 1988, os filhos fora do casamento eram tachados como ilegítimos.

Por fim, os casamentos continuam existindo e os novos arranjos ainda são uma exceção à regra, mas, segundo o presidente do IBDFam, “o princípio fundamental e importante da monogamia está em xeque no mundo. Talvez, esse seja o único assunto filosófico sério da atualidade, pois envolve grandes questões como amor, fidelidade, morte, dinheiro”.

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