Jornal Estado de Minas

Os desafios da cidade para garantir a inclusão

Um dia na vida de Terezinha Oliveira da Rocha, de 61 anos, pode reservar alegrias e surpresas, imprevistos e decepções – e nem com determinação e bom humor ela consegue tirar de letra. Ascensorista licenciada do trabalho e vendedora de títulos de capitalização na Praça Sete, Centro de Belo Horizonte, “para garantir o sustento”, ela enfrenta obstáculos inaceitáveis para quem se locomove numa cadeira de rodas. “É o ônibus com o elevador estragado, são os buracos na calçada, os prédios públicos sem acessibilidade e muitos outros problemas”, lamenta Terezinha, que tem um filho e três netos.

'Quem ama não mata': repúdio a uma série de assassinatos de mulheres por seus companheiros mobilizou ativistas na Igreja São José - Foto: Vera Godoy/Arquivo EM - 18/8/1980
Apesar das queixas, ela reconhece que cidades como Belo Horizonte ao longo da história evoluíram nos conceitos de acessibilidade e inclusão. Mas testemunha: ainda há um longo caminho a percorrer para que essas duas palavras tão importantes façam parte do cotidiano de mais parcelas da população, como outras mulheres, negros e o público LGBT.

Em uma tarde de sexta-feira, o Estado de Minas acompanhou um momento delicado na vida da cadeirante. Querendo usar o banheiro, Terezinha se dirigiu ao prédio da Unidade de Atendimento Integrado (UAI), na Praça Sete, e deu com a cara na porta. No elevador que dá acesso ao sanitário e é próprio para pessoas com deficiência e idosos, lia-se a frase: “Em manutenção”. Segundo a gestão da unidade, fruto do fim do contrato com a empresa que cuidava do equipamento. Como ocorre nessas ocasiões, restou a Terezinha buscar ajuda no comércio.

Um dos maiores gargalos para quem tem necessidades especiais está no transporte público.


Ao visitar os netos no município de Contagem, a cadeirante (motorizada) já chegou a ficar três horas no ponto de ônibus no Centro de BH. Um coletivo parou e não tinha elevador; em outros dois, o equipamento estava estragado; no quarto, passageiros desceram e a ajudaram a entrar. Integrante do Grupo Autoestima e Inclusão, a moradora de Santa Luzia, na Grande BH, vê como avanço o bom acolhimento das pessoas. “Antes, ninguém sabia lidar com um deficiente. Nós não existíamos. Havia um preconceito maior.” Preconceito em qualquer situação é “terrível”, ressalta o presidente do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (Cellos-MG), Azilton Viana.

No caso de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, ele diz que há mais respeito hoje do que há duas décadas, quando saiu do interior para BH. Um bom exemplo, explica, está na Praça Raul Soares, Região Centro-Sul, onde imperavam “a violência e a perseguição”.
Agora, diz, o local se tornou um espaço público de reconhecimento “do afeto de casais”, resultado da luta e de um movimento organizado, com ações permanentes.


Professor de filosofia com mestrado em ciência da informação e doutorado em curso na área, Viana cita outro exemplo das transformações na sociedade: “Em julho de 1997, na primeira Parada Gay de BH, apenas 50 pessoas saíram à rua, mas com máscaras para cobrir o rosto. Já no ano passado foram 80 mil. E ninguém precisou disso”. Mas, para ele, uma nova onda conservadora, mundial, preocupa. O melhor antídoto, acredita, está nas políticas públicas, em ações afirmativas e na sensibilização, já que “a conscientização leva a mudanças de atitude”.

Vulnerabilidade e discriminação

“Por mais que sejamos uma população formada por brancos, negros e indígenas, o que se leva em conta no momento da discriminação racial são os traços da pessoa, como a cor da pele e a textura dos cabelos, alisados ou não. Além disso, homens negros ou mulheres negras, independentemente da classe social, também sofrem com o racismo, mas se a roupa usada indica e representa a cultura da periferia, há um agravamento, e o preconceito que enfrentam é pior ainda. Assim, a pessoa se torna um suspeito aos olhos da polícia e não um sujeito de direitos”, afirma a pesquisadora Aline Neves Rodrigues Alves, professora do curso de especialização em políticas da promoção da igualdade racial na Faculdade de Educação da UFMG, e de geografia na Escola Municipal Lídia Angélica, no Bairro Itapoã, Região da Pampulha.

Certa de que ainda há muita discriminação contra a população negra, Aline explica que as políticas públicas voltadas para superação do racismo, em BH, se concentram nos campos da educação e da cultura. “Para melhorar, em todos os aspectos, e em especial no caso da mulher negra, é preciso acolher suas demandas, como o atendimento qualificado nas delegacias e no local da ocorrência.”

"É constrangedor"

Moradora do Bairro Cidade Nova, na Região Nordeste de BH, a arquiteta Carla Andrade Reis, casada e mãe de uma adolescente de 16 anos, não duvida de que as mulheres ainda são presas fáceis na violência urbana, e que sofrem discriminação quando em posição de comando.
“Quando vou tocar uma obra, enfrento dificuldades ao tratar com os operários. É constrangedor. E muitas vezes preciso contar com a ajuda de um engenheiro”, conta.

Os tempos são outros em BH, conta Carla, formada, nos anos 1990, na Escola de Arquitetura da UFMG, na região Centro-Sul da capital. “Na época de estudante, minhas colegas e eu saíamos de madrugada das festas e descíamos a pé a Avenida Afonso Pena. Hoje, não teria coragem de fazer isso, pois não me sinto segura nem para sair de carro à noite.”


A esperança da arquiteta é que haja mais respeito, menos violência e que o abominável preconceito, contra quem quer que seja, finalmente caia por terra. Do descaso à acolhida ‘‘No ano em que completo 29 anos de jornal Estado de Minas, considero uma honra compartilhar a experiência que tive em uma reportagem de mobilidade urbana. Não pude deixar de me emocionar com a história da mãe de três filhos, dois deles cadeirantes, que depende diariamente do transporte público.

Acompanhamos sua luta diária ao sair de casa, em Ribeirão das Neves, na região metropolitana, e seguir para a Associação Mineira de Reabilitação, no Bairro Mangabeiras, em BH. O percurso é feito três vezes por semana, em quatro conduções, com um filho em cadeira de rodas e o outro no colo – às vezes com o terceiro. Além da batalha dessa guerreira, me impressionou o comportamento de motoristas de ônibus que não paravam no ponto após avistar aquela família, que precisa tanto de auxílio e carinho, em vez de descaso e desrespeito. O conforto, por sorte, vem a bordo do mesmo meio de transporte: passageiros que se prestavam a ajudar mãe e filhos mostram que Belo Horizonte, mais que esperança, tem jeito.’’ .