Aqui na Serra do Cipó – onde moro há um ano – está tudo bem. Mas é o piado dos pássaros no ninho que me acorda às 6h. Antes impossível para quem não gostava de assumir nenhum compromisso tão cedo. Abro os olhos e espreguiço para ver como está Mel, a vira-latas que acabei de adotar. Aprendo com ela a me espichar toda antes de sair da cama. Mas o que me chama a atenção agora é a flor de cactus que acabou de nascer. Parece uma estrela. Perdi o espetáculo do desabrochar por questão de segundos, porque me distraí com o bando de maritacas que, hoje, voam num estranho silêncio.
O despertador do celular toca agora, já às 7h. Eu morro de rir. Vou lá, desligo e deixo o smartphone off-line, porque vou caminhar. Sempre adorei andar sem rumo para pôr as ideias em ordem. Na cidade era assim. Aqui na Serra do Cipó também. Apesar de saber que caminhar me acalma e põe em ordem os pensamentos, só agora entendo por que o silêncio e o caminhar são formas de resistência política neste mundo conectado, onde todos andam de cabeça baixa conversando no WhatsApp, Facebook, Instagram – e toda essa linguagem virtual.
A jornalista Déa Januzzi, criadora do blog Novos Velhos, e militante do envelhecimento ativo pregado pela ONU - Foto: Arquivo EM
Antes de sair, tomo um banho na ducha do jardim. A água gelada entra pelos poros da pele e rega a minha alma. Mel faz a maior festa para mim, como se agradecesse por tê-la tirado da rua e dos maus-tratos. Nós duas brincamos e sigo pela rua onde moro, com o significativo nome de Santana. Passo pela casa da artista plástica Waninha, que mora no Cipó há 11 anos. Ela tem uma verdadeira farmácia de ervas, flores, sementes, capins.
A casa dela é um ateliê a céu aberto. Um grilo acaba de pousar na varanda dela em cima dos pincéis e dos carimbos que ela mesma confecciona para decorar panos de prato, toalhas, bandanas, bolsas e tudo o que a criatividade permitir. Bato o ponto todos os dias na casa de Waninha. A gente ri, conversa, troca receitas, toma chá com folhas de laranjeira, de mexerica, para acalmar o espírito inquieto.
Ela me conta que ficou livre do vício de ver televisão. Ex-dependente, ficava 24 horas ligada na telinha, mas hoje prefere defender os animais e a natureza da Serra do Cipó. É uma militante ferrenha. Não gosta de ver animal maltratado nem lixo por todo lado. Ela recicla tudo. Parece que faz parte de um novo tempo, sem tantas atrocidades. Foi Waninha quem me trouxe a Mel. Temos guarda compartilhada. Um dia, ela compra o remédio para pulgas, outro dou as vacinas necessárias.
Quando vou a BH, ela toma conta da Mel. Waninha também tem a Flor e a Fray, dois anjos caninos. O celular de Waninha chama para a reunião no Mercadinho Tá Caindo Fulô, um espaço dos produtores locais onde eles levam todos os dias frutas, verduras e legumes sem veneno. Chitas coloridas enfeitam as mesas e as estantes. É um mercado de encantos. Despeço-me dela e procuro uma das entradas do Parque Nacional da Serra do Cipó, para caminhar na trilha que vai dar no Rio Cipó, onde descobri uma de suas muitas curvas.
Enquanto não chego até o remanso do rio, penso que estou envelhecendo, que no horizonte do futuro vai ocorrer um tsunami demográfico. A cada ano, 600 milhões de pessoas chegam aos 60 anos. Cria do emprego formal, não me planejei para a velhice, mas pretendo ser convocada para a revolução dos velhos.
O despertador do celular toca agora, já às 7h.
Antes de sair, tomo um banho na ducha do jardim. A água gelada entra pelos poros da pele e rega a minha alma.
A casa dela é um ateliê a céu aberto. Um grilo acaba de pousar na varanda dela em cima dos pincéis e dos carimbos que ela mesma confecciona para decorar panos de prato, toalhas, bandanas, bolsas e tudo o que a criatividade permitir. Bato o ponto todos os dias na casa de Waninha. A gente ri, conversa, troca receitas, toma chá com folhas de laranjeira, de mexerica, para acalmar o espírito inquieto.
Ela me conta que ficou livre do vício de ver televisão. Ex-dependente, ficava 24 horas ligada na telinha, mas hoje prefere defender os animais e a natureza da Serra do Cipó.
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As transformações no comportamento dos mineirosVidas conectadas em rede no país do celularOs novos formatos da família mineiraOs desafios da cidade para garantir a inclusãoOs bailes da época de ouro nos salões da cidadeQuando vou a BH, ela toma conta da Mel. Waninha também tem a Flor e a Fray, dois anjos caninos. O celular de Waninha chama para a reunião no Mercadinho Tá Caindo Fulô, um espaço dos produtores locais onde eles levam todos os dias frutas, verduras e legumes sem veneno. Chitas coloridas enfeitam as mesas e as estantes.
Enquanto não chego até o remanso do rio, penso que estou envelhecendo, que no horizonte do futuro vai ocorrer um tsunami demográfico. A cada ano, 600 milhões de pessoas chegam aos 60 anos. Cria do emprego formal, não me planejei para a velhice, mas pretendo ser convocada para a revolução dos velhos.
Ainda bem que envelhecer hoje não é uma tragédia, mas uma conquista.
Projeções indicam que, dentro de 20 anos, o Brasil será a sexta nação mais envelhecida do mundo, sendo que os antigos tabus não se aplicam mais. Vamos conviver cada vez mais com velhos ativos, conscientes e integrados. Faço parte dessa geração que mudou comportamentos e que vai lutar para ter uma velhice ativa e saudável, sem preconceitos.
Tenho que confessar: morar na Serra do Cipó é um esporte radical. Imagine tomar um banho de cachoeira e ter que “escalar as pedras” até lá. Imagine que neste momento estou exausta com a caminhada de mais de uma hora até o Retiro – um lugar mágico, que exige condicionamento físico e disposição para quem já passou dos 60. Na companhia de uma nativa de nome Soninha, desbravo a Serra do Cipó. Ela tem 40 anos, mas ninguém de 20 é tão saudável quanto ela. Às vezes sinto o peso da idade, pois Soninha tem que me dar a mão para descer uma pedra ou outra. Escorrego aqui e ali, mas chego, com certa dificuldade, para o melhor banho de rio que já tomei. Vejo as piabas que brincam à minha volta e penso: “Será que dá para envelhecer aqui?”.
De volta, me deparo com jovens saindo da escola, a maioria com o celular na mão e a cabeça baixa para conversar com o outro, mesmo que ele esteja a dois passos. Aqui também os nativos digitais fazem da internet uma extensão do corpo. Smartphones são como cordões umbilicais. Eles estão à margem de muitas conquistas urbanas, mas ligados o tempo todo no WhatsApp.
Sei que, algum dia, as pessoas que têm um comportamento contrário a essa geração cabeça baixa vão se tornar cool. Assim como hoje é feio destruir o meio ambiente. Não vou jogar pedras na tecnologia, apesar de ainda ser uma semianalfabeta virtual, mas enquanto escrevo este texto, graças à internet que chega aqui por fibra ótica, continuo pertencendo ao mundo.
Estou on-line agora e o celular grita. É Raquel Camargo, criadora da agência Lhama-me. Ligação via WhatsApp. Ela me avisa que não está em BH, mas morando na Austrália para aprender mais. Nômade digital, ela acha que a tecnologia não é o demônio do negócio. “É muito mais a nossa dificuldade de administrar a emoção.
Porque a gente usa a tecnologia muitas vezes como fuga emocional, como quando você não está conseguindo lidar com uma situação, então, para de pensar no assunto. Como? Ah, vamos torrar nosso tempo fazendo nada no Facebook. Fazendo nada no Instagram. Desperdiçando nosso tempo. Enfim, todo mundo faz isso! E se não fosse a tecnologia, a internet, o celular, seria o cigarro na década de 1940. Seriam outras coisas, porque o ser humano sempre vai procurar esse tipo de muleta.”
Combino as aulas com Raquel, que me tira a ignorância virtual: “Nômade Digital é uma pessoa que está disposta a viver em outros países, em qualquer lugar, ou que seja na Serra do Cipó usando a internet como suporte, para fazer a vida ser sustentável”.
Depois de conversar com Raquel, volto a ficar no modo avião e lembro-me de uma frase de um cronista carioca: “A maior prova de amor hoje é desligar o celular”. Concordo. Aqui, na Serra do Cipó, continuo conectada interna e externamente. De vez em quando faço um detox virtual. Sigo à risca um dos conselhos que o astrofísico britânico Stephen Hawking (1942– 2018) deixou para os filhos: “Lembrem-se de olhar as estrelas e não para baixo”.
Déa Januzzi é jornalista e rebelde. Faz parte de uma geração que mudou comportamentos. Formada em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1974, trabalhou como repórter especial e subeditora do caderno Gerais por 39 anos. Foi também autora da coluna Coração de Mãe, no caderno Bem Viver. Criadora do blog “Novos Velhos”, aos 65 anos, é militante do envelhecimento ativo pregado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Endereço do blog: www.deajanuzzi.com
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Projeções indicam que, dentro de 20 anos, o Brasil será a sexta nação mais envelhecida do mundo, sendo que os antigos tabus não se aplicam mais. Vamos conviver cada vez mais com velhos ativos, conscientes e integrados. Faço parte dessa geração que mudou comportamentos e que vai lutar para ter uma velhice ativa e saudável, sem preconceitos.
Tenho que confessar: morar na Serra do Cipó é um esporte radical. Imagine tomar um banho de cachoeira e ter que “escalar as pedras” até lá. Imagine que neste momento estou exausta com a caminhada de mais de uma hora até o Retiro – um lugar mágico, que exige condicionamento físico e disposição para quem já passou dos 60. Na companhia de uma nativa de nome Soninha, desbravo a Serra do Cipó. Ela tem 40 anos, mas ninguém de 20 é tão saudável quanto ela.
De volta, me deparo com jovens saindo da escola, a maioria com o celular na mão e a cabeça baixa para conversar com o outro, mesmo que ele esteja a dois passos. Aqui também os nativos digitais fazem da internet uma extensão do corpo. Smartphones são como cordões umbilicais. Eles estão à margem de muitas conquistas urbanas, mas ligados o tempo todo no WhatsApp.
Sei que, algum dia, as pessoas que têm um comportamento contrário a essa geração cabeça baixa vão se tornar cool. Assim como hoje é feio destruir o meio ambiente. Não vou jogar pedras na tecnologia, apesar de ainda ser uma semianalfabeta virtual, mas enquanto escrevo este texto, graças à internet que chega aqui por fibra ótica, continuo pertencendo ao mundo.
Estou on-line agora e o celular grita. É Raquel Camargo, criadora da agência Lhama-me. Ligação via WhatsApp. Ela me avisa que não está em BH, mas morando na Austrália para aprender mais. Nômade digital, ela acha que a tecnologia não é o demônio do negócio. “É muito mais a nossa dificuldade de administrar a emoção.
Porque a gente usa a tecnologia muitas vezes como fuga emocional, como quando você não está conseguindo lidar com uma situação, então, para de pensar no assunto. Como? Ah, vamos torrar nosso tempo fazendo nada no Facebook. Fazendo nada no Instagram. Desperdiçando nosso tempo. Enfim, todo mundo faz isso! E se não fosse a tecnologia, a internet, o celular, seria o cigarro na década de 1940. Seriam outras coisas, porque o ser humano sempre vai procurar esse tipo de muleta.”
Combino as aulas com Raquel, que me tira a ignorância virtual: “Nômade Digital é uma pessoa que está disposta a viver em outros países, em qualquer lugar, ou que seja na Serra do Cipó usando a internet como suporte, para fazer a vida ser sustentável”.
Depois de conversar com Raquel, volto a ficar no modo avião e lembro-me de uma frase de um cronista carioca: “A maior prova de amor hoje é desligar o celular”. Concordo. Aqui, na Serra do Cipó, continuo conectada interna e externamente. De vez em quando faço um detox virtual. Sigo à risca um dos conselhos que o astrofísico britânico Stephen Hawking (1942– 2018) deixou para os filhos: “Lembrem-se de olhar as estrelas e não para baixo”.
Déa Januzzi é jornalista e rebelde. Faz parte de uma geração que mudou comportamentos. Formada em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1974, trabalhou como repórter especial e subeditora do caderno Gerais por 39 anos. Foi também autora da coluna Coração de Mãe, no caderno Bem Viver. Criadora do blog “Novos Velhos”, aos 65 anos, é militante do envelhecimento ativo pregado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Endereço do blog: www.deajanuzzi.com