Sem me preocupar com a ordem cronológica dos fatos e sem fazer qualquer pesquisa, mas seguindo apenas os “caminhos da memória” – assim como Geraldo Freire em seu belo livro homônimo –, lembro-me de que cheguei à editoria de Pesquisa do Estado de Minas em 1979, levado por Carlos Felipe. Na pequena sala em que comecei a trabalhar, em meio a milhares de fotografias e recortes de jornais, recebi a tarefa de datilografar os textos que o professor Aires da Mata Machado Filho trazia, na maioria das vezes manuscritos, para serem publicados na coluna sobre língua portuguesa que ele assinava no jornal.
O filólogo famoso enxergava quase nada. Eu ia buscá-lo na portaria, todas as semanas, para ajudá-lo a subir as estreitas escadas do prédio da Rua Goiás. Bom de prosa, certa vez nos contou que estava num ponto de ônibus da Rua da Bahia, esperando o Floresta-Santo Antônio, e pediu ao homem ao lado que lhe avisasse da chegada do coletivo. O nosso grande intelectual ouviu, de pronto: “Moço, o senhor não repare não, mas eu também sou analfabeto”.
Ainda jovem, dava meus primeiros passos no jornalismo e na literatura. Certa manhã, separava algumas fotos na “Pesquisa”, quando Roberto Drummond, subeditor da Segunda Seção, e a quem dias antes havia mostrado uns contos de minha autoria, pediu-me que fosse ao Hotel Del Rey, ali na esquina, entrevistar Pedro Nava. No dia seguinte, o escritor faria uma palestra no Palácio das Artes. Jamais havia lido um livro do grande memorialista, nem sabia nada de sua vida, mas segui adiante.
De volta à redação, Roberto Drummond perguntou: “Como foi lá?”. “Foi ótimo”, respondi, e redigi a matéria como pude. Igualmente solidário, Roberto a reescreveu. A partir daquele dia, ficamos amigos. Posteriormente, dividimos mesas em encontros literários – certa vez, tivemos a honra de participar de uma delas ao lado de Fernando Sabino.
Autor do clássico Hilda Furacão, Roberto estava conosco no dia em que o cantor Luiz Gonzaga foi à sala da “Pesquisa”, onde seria entrevistado por Carlos Felipe, autor de uma página semanal sobre MPB. Terminada a conversa, Gonzagão falou do desejo de comprar goiabada e queijo para se lembrar dos tempos em que morou em Minas.
Foi uma festa. Seguimos a pé. Gonzagão, muito solícito, foi muito cumprimentado durante o trajeto pela Avenida Augusto de Lima, que demorou bem tempo, pois de minuto a minuto alguém nos parava. O assédio (no melhor sentido do termo) continuou lá no “mercadão”. Pelo que me lembro, comerciante nenhum cobrou pelos produtos escolhidos por ele. Um dos pesares que tenho é não termos tirado uma foto naquela tarde.
Aliás, não fiz foto nem com Luiz Gonzaga nem com Cartola, a quem entrevistei no Teatro Francisco Nunes, quando ele veio a BH participar do Projeto Pixinguinha. Pelo menos, tenho o consolo de tê-lo acompanhado até o Rococó, um bar/lanchonete na Avenida Afonso Pena, onde o grande sambista tomou dois conhaques.
Se não documentei meus encontros com Gonzagão e Cartola, com Cauby Peixoto foi diferente. Guardo a foto com ele. No decorrer da entrevista no Hotel Sol Meliá, registrada por Tião Mourão, perguntei ao cantor, mais preocupado com os cliques do que com a conversa, com quem havia aprendido a fazer tantas poses.
– Foi Carmen Miranda quem me ensinou – respondeu o cantor.
Também apareço num retrato ao lado da diva Clara Nunes, convidada para uma das inesquecíveis festas de Natal que Anna Marina organizava na garagem do prédio da Rua Goiás.
Vaidades fotográficas à parte, entre centenas de matérias, entrevistas e crônicas que fiz para o EM, não me esqueço da conversa com o cirurgião plástico Ivo Pitanguy, que veio a BH lançar um livro. Nosso encontro se deu na suíte de um dos últimos andares do Othon Palace Hotel. Conversávamos perto da janela, com bela vista para as montanhas. Certa hora, ele apontou para elas e disse: “Veja como aqueles contornos se assemelham a um belo corpo de mulher”. Desde então, sempre que vejo as serras de Minas e seus relevos me lembro daquela frase.
Anos antes, lá mesmo no Othon, entrevistei o escritor José Mauro de Vasconcelos. Comentei o encantamento que tinha pelos livros dele, e o autor de Meu pé de laranja-lima (injustamente esquecido pela crítica) se emocionou e me deu um abraço. Poucos meses depois, morreu. De outra feita, no lobby do Hotel Ouro Minas, ao perguntar ao professor Antonio Candido, o maior crítico literário que este país já teve, quais livros ele andava lendo, o mestre respondeu: “Não leio mais, agora só releio”.
Seguindo os “caminhos da memória”, lembro-me de que em 21 de junho de 2002 ( à noite, o Brasil jogaria com a Inglaterra pela Copa do Mundo), estava na redação do EM, já na Avenida Getúlio Vargas.
Na manhã seguinte, nosso diretor de redação, Josemar Gimenez, pediu que, em nome do jornal, eu escrevesse o texto de despedida do amigo. Foi a primeira das mais de mil crônicas que nos 13 anos seguintes publicaria no Estado de Minas.
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