Jornal Estado de Minas

Domando a chuva para garantir água no sertão

às margens do lago formado pela contenção da enxurrada é possível plantar sem sofrer os efeitos da estiagem (foto: Wagner Tavares/Divulgação)

O planeta Terra é composto por 70% de água, mas somente 2,5% dessa porção é água doce, com a maior parte situada nos polos, indisponível para o consumo imediato. O Brasil concentra 12% da água doce superficial do mundo. No entanto, não dá para falar em fartura. Pelo contrário, por conta das mudanças climáticas e das diversas formas de degradação ambiental, o recurso é cada vez mais escasso, agravando a crise hídrica. O problema é mais sério em regiões semiáridas, como no Nordeste. Nesse contexto, as ações que objetivam a proteção das nascentes e da água tornam-se de grande relevância não somente para a vida, mas também para manter a produção agrícola – assim como para outros setores da economia.


 
O Estado de Minas começa a publicar uma série de reportagens sobre as estratégias voltadas para a conservação e o uso racional da água e para a sustentabilidade ambiental. Uma das iniciativas de grande impacto para democratização do acesso ao recurso hídrico no semiárido é o sistema de barraginhas de água da chuva, a baixo custo, experiência que surgiu no Norte de Minas e foi difundida pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), se multiplicando no território mineiro e no país.
 
Os reservatórios servem para contenção de água da chuva, fazendo com que a água infiltre no subsolo e recarregue o lençol freático, impedindo a erosão. Assim, tornaram-se um grande instrumento de recuperação ambiental e das fontes hídricas, auxiliando o pequeno produtor a se manter na atividade e a conviver com a seca. O projeto tem como idealizador e coordenador o engenheiro-agrônomo e pesquisador Luciano Cordoval de Barros, da unidade da Embrapa Milho e Sorgo de Sete Lagoas. Segundo ele, já foram construídas em todo país pelo menos 600 mil barraginhas, a metade delas em Minas Gerais. O sistema se expande para além do semiárido e já chegou a 15 estados.
 
O projeto começou a ser desenvolvido pela Embrapa há 24 anos, quando foram construídas as primeiras 28 barraginhas. No entanto, o pesquisador Luciano Cordoval relata que começou a trabalhar a ideia há quase 37 anos, em 1982, no município de Janaúba, no Norte do estado, castigado historicamente pelo clima semiárido. “Eu peguei o gosto e paixão pelo semiárido. Vendo o sofrimento imposto pela seca, eu fui idealizando as coisas, tentando alguma solução para o semiárido. Um dia, vi a natureza fazendo uma barraginha ao longo de uma enxurrada. Por conta do assoreamento, formou-se uma barraginha. Dias depois, no lugar, ao redor da lama, estava tudo verdinho, parecendo um canteiro. A partir daí, comecei a fazer os primeiros desenhos das barraginhas”, relata.



 
O pesquisador informa que a tecnologia foi “fincada” no semiárido mesmo em 2001, quando foi implantada no Vale do Jequitinhonha, começando pelo município de Minas Novas, onde foram construídas 3 mil barraginhas em 47 comunidades. A partir daí, o projeto se estendeu para outros municípios do semiárido mineiro (que abrange o Jequitinhonha e o Norte do estado).
 
Em 2005, numa ação da Fundação Banco do Brasil (FBB), o modelo de “segurar a água da chuva” foi levado para o Nordeste, sendo incrementado no Piauí e no Ceará. Em seguida, a experiência foi bem-sucedida também no Espírito Santo e no Tocantins. Hoje, informa Cordoval, o projeto já alcançou 15 unidades da Federação, amenizando o problema da seca em outros estados nordestinos como Bahia, Paraíba e Sergipe. Em função dos resultados, o sistema se expandiu para as regiões Norte (Pará), Centro-Oeste (Goiás, Distrito Federal e Mato Grosso), Sudeste (São Paulo) e Sul (Rio Grande do Sul e Santa Catarina).


Alternativa

 
O pesquisador Luciano Cordoval destaca que a construção das barraginhas tem sido a alternativa para segurar a água da chuva no semiárido, onde a estação chuvosa, além de ser menor, é irregular. “O semiárido tem a característica de chover tudo de uma vez. No início do período chuvoso chove bastante. Depois, passa dois ou três meses sem chuva. Aí, morre tudo que o pessoal plantou”, descreve.


 
Nesse contexto, relata Cordoval, “o sistema de barraginhas aproveita de forma eficiente a água das chuvas irregulares e intensas, permitindo que a água se infiltre no solo, recarregando o lençol freático. Quanto mais rápido a água se infiltrar no solo, mais eficiente será a barraginha. Assim, ela estará apta a receber as águas das próximas chuvas e seguramente durante todo o ciclo chuvoso”, explica o engenheiro-agrônomo, ressaltando ainda que a infiltração subterrânea impede a evaporação.
 
Ele salienta que com a implantação dos reservatórios, as famílias se tornam verdadeiras guardiãs das águas. Destaca que, ao recarregar o lençol freático, “as barraginhas vão recuperar os mananciais, que são os mantenedouros das nascentes, garantindo a revitalização dos córregos e rios”.
 
Cordoval destaca que, além do efeito ambiental, o sistema gera bons resultados para a agricultura, contribuindo para a melhoria de vida no campo. “A água da chuva que é retida umedecerá o entorno das barraginhas, o que propicia a implantação de lavouras. As pastagens ao redor das barraginhas desenvolvem-se mais rapidamente. Além disso, a água que infiltra no solo vai avançando de maneira subterrânea, umedecendo as baixadas, onde são criadas condições para a agricultura. Aí, serão produzidos alimentos e haverá melhoria no sustento das famílias.Vai melhorar a renda local e regional. Essas vantagens são refletidas nas feiras e no comércio, com maior satisfação das famílias”, descreve.


 
Cordoval assegura que a tecnologia combate o êxodo rural. “Com a construção de várias barraginhas em uma propriedade, surge a “cultura de colher água da chuva. Assim, as lavouras não vão perder no veranico. As famílias ficarão mais motivadas e, além de proteger o solo, poderão permanecer em seus locais de origem, esquecendo o êxodo rural”, comenta. “Existindo a agricultura e a produção, cria-se a sustentabilidade da propriedade e da família. Isso gera dignidade e a cidadania no campo.”


Baixo custo

 
Além do ganho ambiental, uma das grandes vantagens das barraginhas de contenção de água é o baixo custo. O engenheiro-agrônomo Luciano Cordoval ressalta que são construídos barramentos em grotas, as menores com capacidade para 100 mil litros (oito metros quadrados de raio) e as maiores – para enxurradas fortes”, com capacidade de 200 mil litros (16 metros quadrados).
 
O pesquisador da Embrapa informa que a barraginha de 100 mil litros – “no formado de meia-lua, meio queijo ou arco”– é feita com cerca de duas a três horas (o tempo varia de acordo com as condições do solo) de máquina retroescavadeira, custando aproximadamente R$ 300 (R$ 120 o preço da hora trabalhada, em média). O reservatório com capacidade para armazenar 200 mil litros custa cerca de R$ 600.




Sistemática muito simples


Luciano Cordoval de Barros
Pesquisador e engenheiro-agronômo da Embrapa

Nos dias de hoje, esse desenho ao lado simboliza bem a mensagem das barraginhas coletoras de água das chuvas. Imaginem a fazendinha como uma árvore caída sobre ela, tombada pelos ventos, tendo suas partes altas, medianas e baixadas e imaginando que essa árvore está caída na propriedade, o tronco dessa árvore representaria uma grota seca, os galhos de sua copa simbolizariam as enxurradas. Assim, toda chuva caída no terço médio e alto escorreria pelos galhos.

Construindo-se pelo menos uma barraginha por galho, estaríamos matando/domando essas enxurradas, que ao filtrar criariam esses halos/ondas subterrâneas, simbolizando o avanço da infiltração horizontal, além, é lógico, da infiltração vertical. Cada barraginha ao se encher e filtrar formaria um halo; já no segundo enchimento e esvaziamento, formaria o segundo halo/onda, e nos oitavo e décimo enchimentos completaria esses halos maiores, como uma onda subterrânea, afastando do centro de cada barraginha.

E quando todos esses halos se encontrarem, criariam um enorme halo, uma enorme lagoa subterrânea, o que chamamos lençol freático, manancial que é uma reserva para a revitalização dos córregos e rios. Antes de chegar ao córrego, escoar gravitacionalmente, passando pela parte baixa verde/azulada, umedecendo-a, criando condições favoráveis para a agricultura! Mesmo nas partes média e alta, os umedecimentos localizados de cada barraginha criarão uma condição especial úmida nas pastagens, nos pomares, nos capões de mato, em tudo que estiver estabelecido nessas duas partes mais altas. Principalmente as plantações de sistema radicular maior!

 
 

Ganhos ambientais e feitos práticos

Iniciativas como a construção de barraginhas devem ser incentivadas e multiplicadas por aumentar a oferta de água e garantir o equilíbrio ambiental, afirma o professor Flávio Pimenta, do Instituto de Ciências Agrárias (ICA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Montes Claros. “As barraginhas são reservatórios para guardar a água da chuva. Elas têm o objetivo de segurar a água superficial e permitir que essa água se infiltre no solo, contribuindo para a revitalização das bacias hidrográficas”, afirma o professor da UFMG.


 
“Já foi comprovado que a tecnologia tem um resultado muito positivo para o meio ambiente, criando uma relação entre água, solo, clima e planta, pois permite que a água da chuva se infiltre no subsolo, recarregando os aquíferos freáticos e promovendo no entorno das barraginhas uma condição propícia para o desenvolvimento da fauna e da flora”, assegura Pimenta, doutor em engenharia ambiental.
 
Ele salienta que, junto com as pequenas barragens, devem ser implementadas outras ações para melhorar a vida no semiárido. “Além das barraginhas, devem ser feitas outras medidas mitigadoras, como terraços, cercamento de nascentes, recuperação de estradas e o plantio de matas ciliares, que contribuem para a preservação do recurso água”.
 
O gerente regional da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater-MG), Ricardo Demichelli, informa que já foram construídos entre 40 mil e 50 mil pequenos barramentos para contenção da água de chuva na região, com ga- nhos para a natureza e para os pequenos agricultores. “As barraginhas feitas no Norte de Minas têm contribuído muito para a recuperação das sub-bacias. Elas têm muito efeito nas propriedades. As microbacias servem para abastecer as bacias maiores. Já temos exemplo de comunidades abastecidas por esse processo de conservação de água da chuva. Trata-se de uma tecnologia que foi bem assimilada pelo pequeno produtor”, observa Demichelli.


 
Para o gerente regional da Emater-MG, os pequenos agricultores estão mais conscientes sobre a necessidade da proteção ambiental. “Estamos avançando. Hoje, vimos vários produtores que estão fazendo terraços em suas áreas e construindo barraginhas de contenção de água da chuva, além de cuidar mais da proteção de nascentes e de matas ciliares. Eles também adotam zelo na questão da cobertura ambiental e métodos de plantio adequados. É indispensável que cada um faça a sua parte”, avalia o técnico.