O agricultor José Alves dos Santos viu um córrego em seu terreno voltar a correr depois de ter sido “cortado”, presenciando também o festejado ressurgimento das nascentes do ma- nancial. Na propriedade de Manoel da Paixão Isidoro, o aumento do lençol freático e o aparecimento de minadouros foram obtidos como uma conquista.
A produção de hortaliças e outros alimentos que Idenilza Pereira Silva vende numa feira livre melhorou. Em comum, eles sobrevivem no semiárido, onde conseguem produzir e contribuir com o dinamismo da economia. São também testemunhas dos benefícios do sistema de barraginhas de retenção da água da chuva a baixo custo.
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Norte de Minas: à espera da chuva, pasto é semeadoRainha das lavouras no Norte de Minas, banana enfrenta novos desafiosNorte de Minas tem pasto renovado pela volta das chuvasIrrigação é a salvação dos pequenos produtoresNesta segunda parte da série de reportagens sobre as estratégias voltadas para a conservação e uso racional da água na agricultura e para a sustentabilidade ambiental, o Estado de Minas mostra efeitos práticos das barraginhas no semiárido. Elas se tornaram instrumento de recuperação ambiental e das fontes hídricas, auxiliando a pequena propriedade rural a se manter e a conviver com a seca. Em todo o país, já foram construídas pelo menos 600 mil barraginhas, sendo metade delas em Minas Gerais.
José Alves dos Santos, conhecido como seu Zezinho, conta que se sentiu desamparado depois que, há cerca de seis anos, o córrego que passa na sua propriedade “cortou”, na comunidade de Cabeceiras de Curral de Varas, no município de Bocaiuva, no Norte de Minas. Dois anos atrás, o curso d’água voltou a correr e quatro nascentes dele ressurgiram.
O “milagre” do retorno das nascentes e da água do córrego foi resultado de cinco barraginhas de contenção da água da chuva construídas na gleba de Zezinho. Os reservatórios foram construídos nas partes altas e íngremes do terreno em 2015. Ao segurarem a água da enxurrada e fazer com que ela se infiltre no subsolo, os reservatórios contiveram o processo de assoreamento das nascentes.
“Estou muito feliz com as barraginhas. Por causa delas a água fica armazenada e, com o tempo, vai se infiltrando aos poucos, descendo para as nascentes e para o córrego”, afirma. Ele adotou, ainda, outra ação de grande relevância ambiental: o cercamento de uma área de nascentes.
“Estou muito feliz com as barraginhas. Por causa delas a água fica armazenada e, com o tempo, vai se infiltrando aos poucos, descendo para as nascentes e para o córrego”, afirma. Ele adotou, ainda, outra ação de grande relevância ambiental: o cercamento de uma área de nascentes.
O agricultor produz hortaliças como couve, cheiro-verde, alface e cenoura e, além de comercializar a produção na feira livre em Bocaiuva, já vendeu produtos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Com a melhoria da oferta de água, Zezinho disse que pretende aumentar a produção e também retornar o fornecimento para o programa federal.
O córrego que passa no sítio de José Alves ajuda a formar o Rio Guavinipã, que deságua no Rio Jequitaí, afluente do Rio São Francisco. O sitiante destaca que as barraginhas trouxeram vantagens para todos os proprietários rurais da região. “A importância da volta da água é muito grande. O pessoal teve de tirar o dinheiro da saúde e dos alimentos para perfurar poço. Agora, a gente espera que as coisas possam melhorar”, diz o agricultor.
Recuperação
No município de Bocaiuva já foram construídas mais de 3 mil barraginhas. O município foi atendido com projeto da Fundação Banco do Brasil (FBB), que teve a participação de Luciano Cordoval de Barros, pesquisador e engenheiro-agrônomo responsável pelo desenvolvimento do projeto das barraginhas na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Bocaiuva também recebeu 1.400 reservatórios, construídos em várias comunidades rurais dentro do Programa de Revitalização da Bacia do Rio São Francisco, coordenado pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do Rio São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). “As barraginhas têm grande importância por evitar o processo erosivo, contendo os sedimentos e segurando a água da chuva”, observa Iran Ferreira Leite Junior, técnico da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-MG). Ele lembra que foram adotadas outras ações junto a pequenas propriedades rurais do município para preservar as nascentes, como plantio em curvas de nível, terraços e recuperação de áreas degradadas por estradas.
Meta é aposentar o caminhão
As iniciativas voltadas para a recuperação de nascentes e garantia de disponibilidade de água, como as barraginhas de contenção da água da chuva, têm impactos de relevância no semiárido. Um deles é melhoria do abastecimento de água, reduzindo a dependência em relação aos caminhões-pipa, comuns no Nordeste brasileiro, assim como no Norte de Minas e no Vale do Jequitinhonha.
“A nossa intenção é aposentar o caminhão-pipa”, conta o agrônomo e pesquisador da Embrapa Luciano Cordoval de Barros. “Certa ocasião, chegamos a uma cidade do semiárido e o prefeito disse que uma área de 40% do município não precisava do nosso projeto porque era atendida com caminhão-pipa. Disse a ele que tínhamos que atuar exatamente naquela área e que o nosso desafio é aposentar o caminhão-pipa. O prefeito entendeu o recado”, afirma Cordoval.
O ex-secretário de Agricultura de Itaobim (Vale do Jequitinhonha) Wallysson Mardem, confirma que a iniciativa melhorou as condições de abastecimento das famílias da zona rural no período crítico da seca. “Conseguimos em pouco tempo diminuir os gastos com caminhões-pipa para as comunidades contempladas com as barraginhas. Muitas famílias voltaram a plantar hortaliças para subsistência, bem como para a venda para os vizinhos, aumentando, assim, sua renda”, declara Mardem Vieira.
Cordoval ressalta que a oferta de água também ajuda a impedir a saída da população de áreas castigadas pela adversidade climática em direção aos grandes centros. “As famílias dos pequenos agricultores são as guardiãs do solo e da água e isso é mais forte no semiárido, onde, se tivesse água, os filhos não precisariam ir para São Paulo”.
Há uma espécie de “êxodo rural inverso” na região semiárida, como define o pesquisador da Embrapa, a partir da melhoria de vida, da economia e do comércio locais. “Voltando as águas, voltam também a produção de frutas, as hortas, a criação e outras atividades, como a produção de mel, além da flora e da fauna silvestres. Também retornam os filhos que foram embora para São Paulo. É um êxodo inverso proporcionado pelas barraginhas”, conclui Cordoval.
“Se não tiver água, não tem vida”
“A barraginha, pra nós, é salvação. Água é vida. Se não tiver água, não tem vida.” A definição é da agricultora Idenilza Pereira Silva, de 47 anos, que vive na comunidade de União, no município de Itaobim, no Vale do Jequitinhonha. Junto do marido, Euclinísio Rodrigues Silva, de 49, Idenilza planta hortaliças, feijão, mandioca e outras pequenas culturas. Ela atribui a sobrevivência da família aos reservatórios de baixo custo, que retêm a água da chuva numa região obrigada a conviver com os problemas decorrentes da seca.
Como outros milhares de agricultores do Vale do Jequitinhonha, Idenilza sofre com as estiagens prolongadas, que historicamente castigam a região – mesma condição do Nordeste brasileiro. Por isso, para sobreviver e viabilizar a pequena produção, a família recorre a cisternas, abastecidas com a água que se infiltra no solo por meio do sistema de barraginhas.
“Na época das chuvas, elas enchem. A água da chuva se infiltra (no solo) e enriquece o lençol freático, que alimenta nossas cisternas. Não fossem as cisternas, não teríamos água”, explica. Idenilza salienta que a região tem como maior riqueza o Rio Jequitinhonha. “Mas nós estamos longe do rio, assim como muita gente. Com as barraginhas, a água vem até a gente.”
A sertaneja lutadora e o marido retiram o sustento da venda de produtos como hortaliças, mandioca, feijão e mamão, queijo e ainda geleia, doces e roscas caseiras preparados por Idenilza. Os produtos são comercializados na feira de agricultura familiar de Itaobim, realizada semanalmente nas noites das quartas-feiras.
No município de Itaobim foram construídas aproximadamente 400 barraginhas, entre 2013 e 2016. Elas foram viabilizadas a partir de parceria entre a prefeitura do município e a Embrapa, sem custos para os pequenos agricultores beneficiados.
O ex-secretário municipal de Agricultura de Itaobim Wallysson Mardem Vieira Macedo observa que a construção das barraginhas “foi de fundamental importância” para o enfrentamento e a convivência com a seca no município. “Os resultados foram e continuam sendo extraordinários, os reservatórios abastecem os minadouros e as cisternas”, constata Mardem Vieira, que, atualmente, é instrutor do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar-MG) na região. Segundo ele, diversas nascentes “brotaram” abaixo dos barramentos da enxurrada.
Curso dos rios Os efeitos positivos do projeto também são sentidos pelo agricultor Manoel da Paixão Isidoro, de 64, da localidade de Cava do Curral, na zona rural de Glaucilândia, no Norte de Minas. Manoel disse que, após a construção de quatro barraginhas em sua pequena propriedade, foi notória a melhoria da disponibilidade hídrica do terreno, com o aumento do nível do lençol freático, aparecimento de minadouros nas partes baixas e elevação do volume do Rio das Pedras, que passa ali perto.
Manoel diz que a labuta diária ganha melhores condições de plantio e de criação do seu pequeno rebanho. “As plantas das partes baixas estão verdinhas. E não preciso mais levar o gado para longe para beber água. A gente precisa fazer de tudo para conservar a água porque água é vida”, ensina o experiente agricultor.
Em Glaucilândia, foram construídas em torno de 650 barraginhas. A relevância do projeto é reconhecida pelo produtor rural Marcelo Brant, ex-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Verde Grande, um dos afluentes mais importantes da margem direita do Rio São Francisco. “As barraginhas têm grande importância não só para a volta das nascentes, mas também para o curso dos rios, dos córregos e dos lagos naturais e artificiais”, afirma Brant, que também é engenheiro-agrícola e ex-prefeito de Glaucilândia.