Está decidido: uma nova arca de Noé vai sair daqui a pouco em direção a outra frequência. Não é mais possível viver dentro dessa tragédia bíblica, em situação de risco. Um dos grandes teólogos brasileiros, Leonardo Boff – que particularmente respeito e admiro mais do que nunca – sentenciou: “Precisamos de uma arca de Noé, onde todos possam se abrigar, abstraindo-se das diferentes extrações ideológicas e para não sermos tragados pelo dilúvio da irracionalidade e das violências que poderão irromper”. Assino embaixo e peço ajuda a algumas pessoas para embarcar nessa viagem em direção a outro mundo. Cada um terá o direito de levar o essencial, nada que pese na bagagem, no coração e na consciência.
Ódio não entra, nem zombaria nem brigas por nada. Nessa nova arca de Noé não tem lugar para desigualdades intoleráveis, discursos vazios, promessas vãs, desrespeito, acusações, vaidade, medo, estrelismo. A nova arca de Noé é autossustentável e os passageiros têm passaporte para a abundância e a prosperidade, sem moedas falsas, sem o grito desesperado de certas igrejas, cujos fiéis urram por Deus, como se Ele fosse surdo. Na nova arca de Noé, a comunicação com Deus é direta, seja qual for o seu deus.
Nessa nova arca de Noé embarcam também a comunidade quilombola do Açude da Serra do Cipó, com o casal Cuta e Nega, além dos seus dois filhos, que vão dançar o samba de senzala para levar alegria às pernas enferrujadas dos passageiros de todas as cores.
É de bom tom também levar, guardada no coração, a história da comunidade. Em 1915, quando minguaram as águas do rio que dá nome à região, os donos da antiga Fazenda do Cipó decidiram trocar de lugar o engenho de cana. Os trabalhadores, negros recém-alforriados, tiveram então que sair da região da Vargem para povoar a área, que ficou conhecida como Açude.
Assim, vai também dona Mercês, matriarca da comunidade, que continua a história ancestral de mais de 200 anos do Açude – e hoje, já iluminada pelo crepúsculo da vida, sábia, serena, em silêncio, dá assistência aos irmãos quilombolas. Olha para o vestido branco dessa mulher enluarada, sorri para quem ainda não conhece o poder de alguém com nome de Flor.
Os três tambus da comunidade, guardados como tesouros sonoros, também vão.
Na nova arca de Noé está a amiga Duas Tranças. Permitido embarcar com a família, amigos, alguns livros preciosos, algumas sementes e folhas de ervas e árvores que representam a panaceia de cura, que vão fazer muito bem aos tripulantes dessa barca. Sem sementes e flores para os momentos de emergência, a Duas Tranças não vai.
Vai também Maria Teodora, de mãos dadas com a companheira. Elas acabaram de se casar, diante da aprovação das duas famílias, antes que a questão de gênero vire guerra. Maria Teodora traz todos os livros que tem vontade de ler, mas não conseguiu, neste mundo insano, as sete irmãs dela, uma foto da Serra da Piedade, que, desde menina, ela vê a silhueta da janela do seu quarto. Pede para levar o celular embrulhadinho num plástico e bem escondido para documentar a travessia.
Rê Mineira vem com o seu cachorro Negão, um casal de beija-flor-gravatinha, um casal de pato mergulhão e, se couber, um casal de rinoceronte. Wânia também vai levando suas cachorras e um outro cão de rua que acabou de adotar. Vêm com pincéis, carimbos e tintas para fazer muita arte durante o dilúvio. Vem também com ervas para eternizar, como tomilho, hortelã-pimenta, manjericão, capuchinha, coentro selvagem, lavanda e vasos de suculentas. O resto pode ficar.
Gabriel pede para levar “a minha loucura, o meu corpo, um embornal de água e amizade”. Pedido concedido, porque, afinal, normalidade demais é contraindicada, faz mal à saúde. Está provado. Caretice em excesso deu no que deu. Cori vem com todas as irmãs, o filho e sobrinhos, além do HD com todas as músicas preferidas, uma caixa de som, o gato Mel Gibson e a coleção de pedras que ganhou, comprou e achou.
Carlos Ferrer, o nobre pecador, pede passagem.
E lá vou eu nessa arca de Noé, com bloco de anotações, um lápis e nada mais, para contar para vocês as coisas do mundo de lá, logo que acabar o dilúvio. Até!!!!
Déa Januzzi escreve esta coluna quinzenalmente .